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Ponto de fuga
A colina de Bayreuth
Jorge Coli
especial para a Folha
Existe pelo menos um lugar onde a arte exige ainda a reverência sagrada que os românticos inventaram para ela.
Richard Wagner escolheu Bayreuth, uma pequena cidade
ao norte da Bavária, para concretizar um sonho megalomaníaco. Construiu ali, no alto de uma colina, o teatro especial que concebera e destinara à representação de suas
óperas. Foi o rei Ludwig 2º que lhe forneceu os meios financeiros. Wagner abriu um fosso de profundidade vertiginosa para acomodar a orquestra: é o "abismo místico".
Dele emanam, invisíveis, os sons tecidos pelo mestre, pois
os músicos, incluindo o maestro, ficam ocultos ao olhar do
público por uma espécie de longa concha que envia o fluxo
sonoro para o palco. Mistura-se então às vozes e volta para
a platéia, que tem a forma de uma arquibancada, à moda
dos teatros gregos ou romanos.
A acústica é única. Clara, analítica, permite um grande
conforto para os cantores. Graças a um poderoso efeito de
ilusão, a música parece nascer dentro da cena, brotar dos
palácios e florestas fictícios que surgem a cada ato. Ilusão é
palavra essencial dentro do projeto wagneriano da "obra
de arte total". O público deve esquecer que se trata de um
mundo imaginário e acreditar na verdade da arte. Diante
da cortina negra, no silêncio absoluto, no escuro absoluto
(foi Wagner quem, pela primeira vez, exigiu que se apagassem as luzes da platéia durante as representações), cada um espera a revelação. Os assentos abomináveis deixam de incomodar; corações e mentes são invadidos pelos
acordes dessa música intensa, emotiva e hipnótica. Baudelaire comparou seus efeitos aos das drogas.
Avesso - Um marinheiro holandês é condenado a navegar
durante séculos, até encontrar uma jovem que o ame e se
sacrifique por ele. Desse tema da redenção, tão insistente
em suas óperas, Wagner fez uma fábula musical tempestuosa, crispada, em que o desespero flui: "O Navio Fantasma". Sua montagem atual, no Festival de Bayreuth, é de
Claus Guth. Mostra um único espaço, semicircular, salão
em casa burguesa de outros tempos, com o papel de parede manchado e poucos móveis envelhecidos. Uma escada
junto da parede sobe ao primeiro andar que reproduz, de
ponta-cabeça, o piso inferior. É como reflexo em espelho,
jogo de duplos. O holandês e o pai da jovem vestem-se de
modo idêntico e fazem os mesmos gestos. Senta, a heroína, é mostrada como adulta e como menina. As jovens
fiandeiras parecem saídas do "Cremaster", de Matthew
Barney. Tudo vem filtrado pela memória e pelo delírio. No
final, o holandês desaparece por trás da parede, que se fecha para Senta, incapaz de fugir ao confinamento.
Marc Albrecht dirigiu a orquestra com transparência e
fervor. O holandês foi encarnado por John Tomlinson. Esplêndidos cantores, todos, em particular o excelente Daland de Jaakko Ryhänen, e uma revelação inesperada: a
maravilhosa interpretação do tenor Tomislav Muzek, de
apenas 28 anos, no pequeno papel do piloto.
Bardo - A celebridade mítica do Festival de Bayreuth faz
crer que todos seus espetáculos e intérpretes sejam admiráveis. Nem sempre isso é verdade.
Na produção atual de "Tannhauser", os cenários provêm de convenção abstrata muito banal, com cores e formas infelizes. A direção de cena reduz-se a um mínimo
inexpressivo. Stephen Gould investe o papel principal com
belo timbre, voz volumosa, mas muito imprecisa nos agudos. Vênus também é cheia de decibéis, mas sem nuanças.
Roman Trekel, ao contrário, muito musical, encarna Wolfran von Eschenbach com sensibilidade. O discurso orquestral é refinado pelo maestro Christian Thielemann,
uma dos "mascotes" de Bayreuth.
Exclusivo - O teatro do Festival de Bayreuth foi concebido
como um recinto sagrado, um templo, uma igreja de arte.
Só as óperas de Richard Wagner têm o direito de ser nele
representadas. Os fiéis peregrinos que sobem a lendária
colina contam, com o horror e o desprezo devidos a caubóis bárbaros, que os militares americanos, quando ocuparam a cidade em 1945, profanaram, com uma "Mme.
Butterffly", o altar do gênio.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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