São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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Ponto de fuga

A colina de Bayreuth

Jorge Coli
especial para a Folha

Existe pelo menos um lugar onde a arte exige ainda a reverência sagrada que os românticos inventaram para ela. Richard Wagner escolheu Bayreuth, uma pequena cidade ao norte da Bavária, para concretizar um sonho megalomaníaco. Construiu ali, no alto de uma colina, o teatro especial que concebera e destinara à representação de suas óperas. Foi o rei Ludwig 2º que lhe forneceu os meios financeiros. Wagner abriu um fosso de profundidade vertiginosa para acomodar a orquestra: é o "abismo místico". Dele emanam, invisíveis, os sons tecidos pelo mestre, pois os músicos, incluindo o maestro, ficam ocultos ao olhar do público por uma espécie de longa concha que envia o fluxo sonoro para o palco. Mistura-se então às vozes e volta para a platéia, que tem a forma de uma arquibancada, à moda dos teatros gregos ou romanos.
A acústica é única. Clara, analítica, permite um grande conforto para os cantores. Graças a um poderoso efeito de ilusão, a música parece nascer dentro da cena, brotar dos palácios e florestas fictícios que surgem a cada ato. Ilusão é palavra essencial dentro do projeto wagneriano da "obra de arte total". O público deve esquecer que se trata de um mundo imaginário e acreditar na verdade da arte. Diante da cortina negra, no silêncio absoluto, no escuro absoluto (foi Wagner quem, pela primeira vez, exigiu que se apagassem as luzes da platéia durante as representações), cada um espera a revelação. Os assentos abomináveis deixam de incomodar; corações e mentes são invadidos pelos acordes dessa música intensa, emotiva e hipnótica. Baudelaire comparou seus efeitos aos das drogas.

Avesso - Um marinheiro holandês é condenado a navegar durante séculos, até encontrar uma jovem que o ame e se sacrifique por ele. Desse tema da redenção, tão insistente em suas óperas, Wagner fez uma fábula musical tempestuosa, crispada, em que o desespero flui: "O Navio Fantasma". Sua montagem atual, no Festival de Bayreuth, é de Claus Guth. Mostra um único espaço, semicircular, salão em casa burguesa de outros tempos, com o papel de parede manchado e poucos móveis envelhecidos. Uma escada junto da parede sobe ao primeiro andar que reproduz, de ponta-cabeça, o piso inferior. É como reflexo em espelho, jogo de duplos. O holandês e o pai da jovem vestem-se de modo idêntico e fazem os mesmos gestos. Senta, a heroína, é mostrada como adulta e como menina. As jovens fiandeiras parecem saídas do "Cremaster", de Matthew Barney. Tudo vem filtrado pela memória e pelo delírio. No final, o holandês desaparece por trás da parede, que se fecha para Senta, incapaz de fugir ao confinamento.
Marc Albrecht dirigiu a orquestra com transparência e fervor. O holandês foi encarnado por John Tomlinson. Esplêndidos cantores, todos, em particular o excelente Daland de Jaakko Ryhänen, e uma revelação inesperada: a maravilhosa interpretação do tenor Tomislav Muzek, de apenas 28 anos, no pequeno papel do piloto.

Bardo - A celebridade mítica do Festival de Bayreuth faz crer que todos seus espetáculos e intérpretes sejam admiráveis. Nem sempre isso é verdade.
Na produção atual de "Tannhauser", os cenários provêm de convenção abstrata muito banal, com cores e formas infelizes. A direção de cena reduz-se a um mínimo inexpressivo. Stephen Gould investe o papel principal com belo timbre, voz volumosa, mas muito imprecisa nos agudos. Vênus também é cheia de decibéis, mas sem nuanças. Roman Trekel, ao contrário, muito musical, encarna Wolfran von Eschenbach com sensibilidade. O discurso orquestral é refinado pelo maestro Christian Thielemann, uma dos "mascotes" de Bayreuth.

Exclusivo - O teatro do Festival de Bayreuth foi concebido como um recinto sagrado, um templo, uma igreja de arte. Só as óperas de Richard Wagner têm o direito de ser nele representadas. Os fiéis peregrinos que sobem a lendária colina contam, com o horror e o desprezo devidos a caubóis bárbaros, que os militares americanos, quando ocuparam a cidade em 1945, profanaram, com uma "Mme. Butterffly", o altar do gênio.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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