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"O Livro depois do Livro" e "Culturas e Artes do Pós-Humano" evitam falsos
moralismos ao discutir o surgimento de uma nova sensibilidade ligada à tecnologia
O labirinto cibernético do conhecimento
Christof Stache - 18.mar.1999/Associated Press
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Espectadores usam cibercapacetes em feira de computadores em Hanover (Alemanha) |
Teixeira Coelho
especial para a Folha
O
depois já foi ontem muitas vezes. Isso também se aplica ao
"pós-humano" em seus vários
disfarces: a cibernética, a engenharia genética, o "virtual". Quando um
ciberescritor, diz Giselle Beiguelman em
"O Livro depois do Livro" (inclui versão
em CD), toma "Pedro Páramo", de Juan
Rulfo, e o divide em 168 blocos que permitem releituras do original segundo "a
estrutura do labirinto de Dédalo", impossível não lembrar Cortázar e "O Jogo
da Amarelinha" (1963), com suas vastas
recombinações de capítulos que deixaram algum insistente leitor ocupado até
hoje com o romance. Ou, mais antigo, o
"Finnegans Wake" [de Joyce], riocorrente sem início e fim, de águas de leitura
sempre renovadas. Nenhum precisou de
computador, internet.
E, se o ângulo for a filosofia do "pós-humano", como em "Culturas e Artes do
Pós-Humano", de Lucia Santaella, fica
claro que o "novo" assunto remonta pelo
menos ao Iluminismo, quando a cultura
se firmou sobre a natureza. O humano,
que era natural, se torna cultural, e o
"pós-humano" já nasceu. Beiguelman
reconhece a novidade relativa da noção
ao aceitar que o famoso hipertexto, com
sua badalada liberdade de ir e vir entre os
links, é apenas óbvia versão eletrônica
das relações conceituais que os leitores
criadores sempre fizeram.
Antiprofeta
Aliás, "O Livro depois
do Livro" não tem o tom de melado
evangelismo da boa nova cibernético-internético-virtual, que, com raso otimismo, costuma marcar a pregação de Pierre Lévy, profeta da salvação eletrônica
assim como Baudrillard o é da perdição
pelo simulacro ou da perdição simulada.
Beiguelman enfatiza ainda que o pós-humano, se for o nome, já está na informática, técnica da reprodução infinita e
da clonagem. Essa parece ser de fato a
forma (no sentido de Raymond Williams) da produção nesta altura da história -produção de tudo, das coisas ao
conhecimento e à arte. Inútil, então, indagar sobre como evitar o advento do
"pós-humano": ele já está aqui. E fica visível, em seu livro, o caráter incerto, fragmentado, híbrido e flutuante da nova
cultura, que não precisa ser chamada de
pós-humana. É que ele traz sugestivos
endereços de sites onde se poderia ver o
que a autora comenta. Só que alguns não
se abriram quando os busquei, ou por
exigirem demais de meu PC ou por só
aceitarem conexão com Macintosh...
Tecnologia pede dinheiro.
Minha leitura do livro depois do livro
foi então fragmentada, incompleta. Sem
contar que em seis meses alguns desses
sites podem nem mais existir... Uma falha do livro, pensei de início. Depois me
dei conta de que é essa a natureza da informação, do conhecimento e da cultura
hoje -e que isso não é tão mau assim.
Nem tudo está onde se indica, o que
hoje está amanhã não estará, e quase nada é insubstituível: se eu não encontrar
isto, encontro aquilo em outro lugar, tudo bem. O foco não mais é único ou uns
poucos, os muitos focos são enfim realidade na Rede paradoxal depois de ruírem com a guerrilha dos anos 70. No
fundo, aquilo de que Beiguelman fala,
sem dizê-lo, é de uma nova sensibilidade, esta sim real, além de humana. Ou do
advento em grande escala de uma sensibilidade antes de câmera, exercida por
alguns dadaístas, um Cortázar, um Joyce, dois ou três concretistas...
Um dado e uma questão
A leitura
sucessiva (à antiga) ou em paralelo (ao
modo hipertextual) desses dois livros arma um cenário compreensivo do tema
ao tratá-lo como um dado e como uma
questão. O pós-humano já é um dado,
algo que se usa mais do que se discute,
para o livro-roteiro de Beiguelman, um
peso leve fruto de pesquisa apoiada pela
Vitae, inspiradora e tolerante fundação
(humana) cujo prematuro fim lamentaremos ainda mais se as coisas seguirem
como se ensaiam neste pós-janeiro de
2003, quando o centralismo e o dirigismo cultural (e outros) tocados por esse
ente ainda tão inevitável quanto abominável, o Estado (esse sim, velho e autêntico pós-humano), ensaia seu retorno ao
quadro brasileiro.
E o pós-humano ainda é uma questão
para o livro de Santaella, peso mais pesado que aborda também, entre tantas outras coisas humanas, a genética e o protético (versão atual do protéico) como modos do "pós-humano". Também este livro está isento dos habituais moralismos
e falsos problemas que assombram o tema, deixando firme, em palavras em parte tradicionais e em parte minhas -e
uma vez que não somos um destino, mas
uma escolha- a idéia de que nada do
que é humano nos é estranho, que nada
do que é estranho entre os homens deixa
de ser humano e que o pós-humano
nunca poderá (é essa sua forma) ser outra coisa se não humano, demasiado humano -ainda que por marca de origem,
herança ou memória, a memória, que,
lembra Kundera, é o grande instrumento
contra a tirania.
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. É
autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais"
e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras).
O Livro depois do Livro
96 págs., R$ 29,00
de Giselle Beiguelman. Ed. Peirópolis (r. Girassol,
128, CEP 05433-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3816-0699).
Culturas e Artes do Pós-Humano
360 págs., R$ 32,20
de Lucia Santaella. Ed. Paulus (r. Francisco Cruz,
229, CEP 04117-091, SP, tel. 0/xx/11/5575-7362).
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