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+ literatura
Trajano Vieira traduz trecho de "As Bacantes" e comenta as mutações que o protagonista sofre ao longo da peça
DIONISO MÁSCARA E SARCASMO
Lenise Pinheiro - 29.set.2001/Folha Imagem
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Cena de "Bacantes", montagem de José Celso Martinez Corrêa |
Trajano Vieira
especial para a Folha
Não sabemos o que levou Eurípides (485-406 a.C.) a se transferir, em 408 a.C., de Atenas para a Macedônia, onde morreu
antes de ver a representação de sua peça
mais famosa: "As Bacantes" (405 a.C.).
Uma explicação para seu exílio voluntário na corte do rei Arquelau seria a recepção negativa de sua obra em Atenas.
Eurípides estreou em 455 a.C., ano da
morte de Ésquilo, num concurso de tragédia em que não passou do terceiro lugar. Das quatro vitórias que obteve em
vida num universo de 92 peças escritas,
contra 18 de Sófocles, autor de 123 obras,
a primeira só ocorreu em 441 a.C., o que
nos leva a pensar que pelo menos os juízes tinham, a seu respeito, opinião diferente da de Sócrates que, embora não
fosse frequentador assíduo de teatro, não
perdia suas montagens (cf. Aelian, "Varia Historia" 2, 13).
Entre os contemporâneos de Eurípides, as únicas referências (pseudo) biográficas de que dispomos são as comédias de Aristófanes, onde ele figura como
misógino, sofista e filho de verdureira. A
biografia, um gênero tardio na Grécia,
não fazia distinção entre anedotário e fato histórico. Mesmo considerando com
reserva, portanto, as informações de Filocoro (séc. 4º a.C.) e de Sátiro (séc. 3º
a.C.), podemos supor que um dos motivos para a divulgação, na Antiguidade,
da história segundo a qual Eurípides teria vivido numa caverna em Salamina foi
a necessidade de justificar seu insucesso
profissional.
Um dos aspectos mais notáveis das
"Bacantes" diz respeito à manifestação
mutante de Dioniso. Já na abertura da
tragédia, ele fala duas vezes de sua metamorfose (4-5: "Deus em mortal transfigurado, achego-me/ ao rio Ismeno"; v.
54). No verso 1.020, o coro retoma o tema, invocando o deus em sua forma plural. O mesmo ocorrerá num dos versos
finais da peça (1385: "Muitas formas revestem deuses-demos"). Se, no verso
439, ficamos sabendo da expressão sorridente de Dioniso ("Não descorou-lhe o
vinho das maçãs/ do rosto ao se entregar,
rindo, à prisão"), nos versos 1.020-1.023,
Eurípides cita a máscara com a qual o
deus é representado ("prósopon"). Procurei marcar essa identidade entre expressão (riso) e elemento teatral (máscara), traduzindo "gelonti" por "sarcasmo", em lugar de "sorridente" (máscara/sarcasmo):
"Aparece
touro,
dragão-serpente multicrâneo,
leão piroflâmeo!
Deixa te verem!
Ó Baco, máscara-sarcasmo,
em corda mortífera circumprende
o caça-fera!
Que tombe à horda mênade!".
Dioniso não só se manifesta de diferentes formas, mas em diferentes naturezas,
sendo a principal delas a humana, conforme ele registra no prólogo (54-5: "Por
isso, num mortal me transfiguro,/ a forma antiga em natureza humana", "eis
andrós physin"). O antropomorfismo
dionisíaco se distingue do olímpico, que
é sobretudo estratégico: mesmo quando
atuam entre os homens, os deuses mantêm o distanciamento que os singulariza.
A cosmologia olímpica, embora exiba
aspectos da sociedade humana, caracteriza-se pela natureza imperecível de seus
membros, e é com base em sua condição
eterna que eles evidenciam a insignificância dos conflitos humanos.
No final da peça, Cadmo, aniquilado,
observa a Dioniso que sua ação, embora
justa, é tão rancorosa quanto a de um homem, com o que o deus concorda
(1.348). Os outros deuses gregos, quando
se "humanizam", mudam de forma;
Dioniso altera a própria natureza
("physin"). A incorporação do humano
por Dioniso o distingue dos outros imortais. O sorriso de sua máscara exprime a
tensão de um deus que, transubstanciado em homem, conhece por dentro sua
epopéia trágica sem nela se reconhecer.
A referência à máscara põe à luz outro
aspecto importante do drama, o metateatral. Eurípides refere-se, em diversas
passagens, à situação de alguém que vê
outrem. Em alguns momentos, esse personagem é definido pelo mesmo termo
com que se aludia ao público do teatro,
como, por exemplo, no verso 1.047, no
qual o mensageiro diz que Dioniso era o
guia de Penteu para o "espetáculo"
("theoría", "ação de ver um espetáculo"). No verso 829, Dioniso pergunta se
Penteu não mais deseja ser "theatés"
("espectador") das mênades.
Nos versos 621-2, Dioniso relata que,
enquanto Penteu aprisionava um touro,
imaginando ser Dioniso, ele o observava
em silêncio, sentado nas cercanias. Com
esse recurso, Eurípides indica ao público
a natureza artificial da linguagem do teatro e a função performática da platéia,
co-participante da encenação. Dioniso
abandona momentaneamente a função
de protagonista para adotar a de observador, e a cena a que ele assiste é ilusória
(alucinação de Penteu).
Nos versos 810-16, Penteu afirma que
empenharia seu tesouro para ver, sentado e em silêncio, as bacantes, um espetáculo que, embora doloroso, produziria
prazer. O autor representa um tópico da
filosofia de seu tempo, concernente ao
caráter ilusório do mundo sensível. O
teatro configura essa ilusão que, se por
um lado, envolve a platéia, por outro, a
distancia, ao se manifestar como linguagem. No final da peça, é a mudança de
enfoque que permite à Agave reconhecer
que a cabeça que transporta não é de um
leão, mas de seu próprio filho. Aos olhos
da platéia, contudo, ela carrega uma
máscara (1.264-1.284).
Com base em cenas desse tipo, somos
levados a pensar que Eurípides, no final
da vida, reflete sobre noções fundamentais do teatro grego. Um dos verbos que
Homero utiliza para "responder" é
"hypokrínasthai" ("Ilíada", 7, 407;
"Odisséia", 2, 111). Todavia, em outras
passagens do poeta épico, esse termo ganha sentido mais específico, "interpretar" a mensagem enigmática do sonho
ou do prodígio divino ("Ilíada", 12, 228;
"Odisséia", 19, 535, 555). A partir do século 5º a.C., "hypokrínasthai" passa a
significar também "desempenhar um
papel" no âmbito do teatro e, com base
nele, cria-se o substantivo "hypokrités":
ator. Sem entrar na discussão sobre a etimologia de "hypokrités", que tanto poderia derivar da noção de
"interpretação" (de um mito, de um texto) quanto de "resposta" (considerando
a introdução do segundo ator por Ésquilo, responsável pelo traço dialógico da
tragédia), pode-se afirmar que, nas "Bacantes", a função de intérprete cabe ao
espectador. Mas, ao mesmo tempo, ao
apresentar Dioniso desempenhando o
papel de espectador, Eurípides, de certo
modo, transfere ao público a função de
"hypokrités", "ator". Pela representação
do espectador como ator do espetáculo
dionisíaco, o dramaturgo sugere que os
critérios de avaliação sejam buscados no
âmbito da própria representação.
Contradição aparente
No século
20, a peça foi lida como obra de um racionalista contrário a correntes religiosas de seu tempo, cujo protagonista não seria um deus, mas um impostor. Contra essa interpretação, [E.R.] Dodds [autor
de "Os Gregos e O Irracional], ed. Escuta" viu nas "Bacantes" a representação da
irracionalidade. Embora contextualize
sua análise com dados culturais gregos,
Dodds valoriza o caráter transistórico do
que chamamos irracional. Recentemente se tem afirmado que o culto de mistério seria a fonte do drama, uma cerimônia à qual Dioniso esteve ligado pelo menos desde o século 6º a.C..
A leitura da tragédia com base no que
ela é -criação verbal voltada para a encenação- traz algumas vantagens. Em
primeiro lugar, nos libera da necessidade
de buscar uma intenção secreta do autor
em transmitir alguma mensagem oculta,
como se ele estivesse defendendo, no
fundo, uma tese versificada.
Por outro lado, nos permite observar
que a coerência do personagem-símbolo
do teatro reside na diversidade e na contradição aparente. A exclusão do contraditório nada tem a ver com a linguagem
teatral, segundo Eurípides, antes o inverso. O que o público presencia é uma epifania, cuja tensão nasce do fato de Dioniso conter em si o seu contrário. O teatro é
a epifania do encontro e sobreposição
dos opostos. Note-se que, no epílogo, registram-se dois aspectos fundamentais
da manifestação divina, multiplicidade e
imprevisibilidade:
"Muitas formas revestem deuses-demos.
Muito cumprem à contra-espera os
numes.
Não vigora o previsto.
O poro do imprevisto o deus o encontra.
Este ato assim conclui".
Trajano Vieira é professor de literatura grega da
Universidade Estadual de Campinas e tradutor de
"Ájax" e "Édipo Rei", de Sófocles, e "Prometeu Prisioneiro", de Ésquilo (ed. Perspectiva).
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