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Abu Ghraib, entre duas mortes
Slavoj Zizek
Alguém ainda se recorda do infeliz Mohammed al Sahaf, o ministro da Informação de Saddam
Hussein, que, em suas diárias entrevistas coletivas à imprensa, negava heroicamente até mesmo os fatos mais evidentes, mantendo-se sempre fiel à linha
iraquiana? Quando os tanques iraquianos estavam a poucas centenas de metros de seu gabinete, ele continuou a afirmar que as imagens exibidas pela televisão americana dos blindados nas ruas de
Bagdá eram apenas efeitos especiais de
Hollywood. Uma vez, entretanto, ele
afirmou uma verdade estranha.
Diante da declaração de que o Exército
dos EUA já controlava partes de Bagdá,
retrucou: "Os americanos não estão em
controle de nada, nem sequer controlam
a eles mesmos". Quando veio à tona a
notícia escandalosa sobre os fatos esdrúxulos que aconteciam na prisão de Abu
Ghraib (Bagdá), tivemos um vislumbre
dessa dimensão precisa: a de que os americanos não controlam a eles mesmos.
Em sua reação às fotos de prisioneiros
iraquianos torturados e humilhados pelos soldados americanos, divulgadas no
final de abril de 2004, [o presidente]
George W. Bush, de maneira previsível,
destacou que os atos desses soldados foram crimes isolados que não refletem
aquilo que os EUA representam e pelo
qual lutam: os valores da democracia, da
liberdade e da dignidade pessoal. E, na
realidade, o simples fato de o caso ter virado um escândalo público que colocou
o governo americano em posição defensiva foi, em si, um sinal positivo: em um
regime realmente "totalitário", o caso teria simplesmente sido abafado.
Do mesmo modo, não nos esqueçamos de que o simples fato de as forças
americanas não terem encontrado armas de destruição em massa também
constitui sinal positivo: uma potência
realmente "totalitária" teria feito o que
os policiais costumam fazer: plantar drogas e depois "descobrir" as provas...
Entretanto uma série de fatores perturbadores complica o quadro simples. Nos
últimos meses, a Cruz Vermelha Internacional vinha bombardeando as autoridades militares americanas no Iraque
com relatos sobre os abusos cometidos
nas prisões militares no país, e esses relatos foram sistematicamente ignorados;
logo, não é que as autoridades americanas não tivessem conhecimento do que
estava acontecendo -elas simplesmente admitiram o crime apenas quando (e
porque) ele foi revelado na mídia. Em segundo lugar, a reação imediata do comando do Exército americano foi surpreendente: a explicação oferecida foi
que os soldados não haviam sido adequadamente educados sobre as regras da
Convenção de Genebra quanto ao tratamento de prisioneiros de guerra -como
se fosse preciso ser educado a não humilhar e torturar prisioneiros!
Técnicas de tortura
Mas o principal é o contraste entre a maneira "padrão" pela qual os prisioneiros eram torturados no regime de Saddam e a tortura
empregada pelo Exército americano: enquanto, no regime anterior, a ênfase era
dada à dor brutal, os soldados americanos focalizaram a humilhação psicológica. Além disso, o ato de registrar a humilhação com uma câmera, com os perpetradores incluídos nas imagens, seus rostos sorrindo estupidamente lado a lado
com os corpos nus e retorcidos dos prisioneiros, constitui parte integral do processo, formando um contraste marcante
com o segredo que envolvia as torturas
de Saddam. As próprias posições dos
prisioneiros e os "adereços" que usam
sugerem uma encenação teatral, uma espécie de "tableau vivant", o que faz lembrar toda a extensão da arte performática
americana e do chamado "teatro da
crueldade", as fotos de Mapplethorpe, as
cenas esdrúxulas dos filmes de Lynch...
E é essa característica que nos conduz
ao xis da questão: para qualquer pessoa
familiarizada com a realidade do modo
de vida americano, as fotos trouxeram à
mente imediatamente o lado inferior,
oculto e obsceno da cultura popular
americana -por exemplo, os rituais iniciáticos de tortura e humilhação pelos
quais é preciso passar para ser aceito em
uma comunidade fechada. Não é fato
que, a intervalos regulares, vemos fotos
semelhantes na imprensa americana,
quando algum escândalo explode em
uma unidade do Exército ou campus de
faculdade, em ocasiões em que o ritual
iniciático foi além da conta e soldados ou
estudantes foram feridos além de um nível considerado tolerável?
Assim, o que aconteceu não foi simplesmente uma instância de arrogância
americana em relação a uma população
de Terceiro Mundo: ao serem submetidos às torturas humilhantes, os prisioneiros iraquianos foram efetivamente
iniciados na cultura americana -puderam sentir o gosto de seu lado oculto e
obsceno, que forma a contrapartida necessária aos valores públicos de dignidade pessoal, democracia e liberdade. Não
surpreende, portanto, que esteja ficando
claro, pouco a pouco, que a humilhação
ritual de prisioneiros iraquianos não foi
um caso limitado, mas fez parte de uma
prática largamente difundida. Em 6 de
maio, Donald Rumsfeld foi obrigado a
admitir que as fotos levadas a público
formam apenas "a ponta do iceberg" e
que há imagens muito mais fortes ainda
por vir. Essa é a realidade da afirmação
feita por Rumsfeld em tom de pouco caso, há dois meses, quando disse que as
regras da Convenção de Genebra estão
"desatualizadas" com relação à guerra
como ela é travada hoje.
Em um debate recente promovido pela
rede NBC sobre o destino dos prisioneiros de Guantánamo, um dos argumentos em favor da aceitabilidade ético-legal
do status deles era que "eles são aqueles a
quem as bombas deixaram de atingir": já
que foram alvos de bombardeios americanos e, por acidente, sobreviveram a
eles, e como esses bombardeios faziam
parte de uma operação militar legítima,
não se pode condenar o que foi feito deles depois de serem feitos prisioneiros,
após o combate. Seja qual for sua situação, ela é melhor -menos grave- do
que a morte. Esse raciocínio revela mais
do que pretende fazer: coloca o prisioneiro quase literalmente na posição de
morto-vivo, de alguém que, de certo modo, já está morto (tendo seu direito à vida
sido perdido pelo fato de ter sido alvo legítimo de um bombardeio mortal), de tal
modo que ele hoje é uma instância de algo que Giorgio Agamben chama de "homo sacer", aquele que pode ser morto
com impunidade, já que, aos olhos da lei,
sua vida já deixou de ter valor.
Se os prisioneiros de Guantánamo se
encontram no espaço "entre duas mortes", ocupando a posição de "homo sacer" ou legalmente mortos (privados de
status legal determinado), embora biologicamente continuem vivos, as autoridades americanas que os tratam dessa maneira também ocupam uma espécie de
status legal intermediário que forma a
contrapartida ao "homo sacer". Embora
ajam como poder legal, seus atos já não
são cobertos e limitados pela lei: elas
operam em um espaço vazio que ainda
está dentro do domínio da lei. As revelações recentes sobre Abu Ghraib apenas
trazem à tona todas as consequências de
situar prisioneiros nesse espaço "entre
duas mortes".
Filosofia de botequim
Em março
de 2003, ninguém mais, ninguém menos
do que o próprio Rumsfeld se meteu a fazer filosofia amadora sobre a relação entre o conhecido e o desconhecido: "Existem conhecidos conhecidos", disse ele.
"São as coisas que sabemos que sabemos. Existem desconhecidos conhecidos. Ou seja, existem coisas que nós sabemos que não sabemos. Mas também
existem desconhecidos desconhecidos.
Há coisas que não sabemos que não sabemos". O que ele esqueceu de acrescentar foi o quarto termo, esse, sim, crucial:
os "conhecidos desconhecidos", coisas
que ignoramos conhecer -que constituem precisamente o inconsciente freudiano, o "conhecimento que não conhece a si mesmo", como dizia Lacan.
Se Rumsfeld acha que o perigo principal no confronto com o Iraque está nos
"desconhecidos desconhecidos" -as
ameaças de Saddam que nem sequer
desconfiamos quais possam ser-, o escândalo de Abu Ghraib deixa claro onde
estão os maiores perigos: nos "conhecidos desconhecidos", as crenças, suposições e práticas obscenas que repudiamos
e fazemos de conta que desconhecemos,
embora formem o pano de fundo do
desfrutar obsceno que sustenta o modo
de vida americano. E, como corretivo final, deveríamos tentar imaginar um grupo de soldados árabes sujeitando soldados americanos feitos prisioneiros às
mesmas humilhações e torturas -qual
não teria sido a revolta da opinião pública ocidental "civilizada"?
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana.
É autor de, entre outros, "Bem-Vindo ao Deserto
do Real" (Boitempo). Escreve periodicamente na
seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.
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