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Ponto de Fuga
Era uma vez
Carlos Reichenbach, conhecido como "Carlão", é alto: uma espécie de torre humana; ora, tudo o que filma torna-se leve, diáfano
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Falsa Loura", dirigido por
Carlos Reichenbach, lembra um conto de fadas.
Sua verdade não é a do realismo. Encontra-se na maneira
como o filme gostaria que as jovens operárias fossem.
Lindas, no fim das contas vivendo uma vida interessante e
cheia de peripécias. O dinheiro
surge sempre que se precisa
dele e serve como vara de condão, transformando bruxinhas
em cinderelas.
Há situações de infelicidade,
sem dúvida. Há sexo canalha,
há drogas, às vezes. Apesar
disso, a alma inefável dessas
moças, que transparece na
graça, ela também inefável,
dos corpos e dos rostos, guarda, até o fim, uma pureza inalterada.
O olhar admirado e enternecido do cineasta pelas jovens
não se estende ao mundo masculino. Do advogado todo-poderoso, corrupto, com um
charuto caricatural na boca,
ao vocalista malhado perpassa, nos homens, uma hipocrisia predadora. Fora o irmão
cabeleireiro, talvez porque
carregue em si um caráter feminino. Fora, ainda, o garoto,
que não é ainda um homem.
O personagem mais complexo e ambíguo é o do pai. Soturno, sinistro, atormentado por
um passado obscuro, encontra
saída no silêncio dissimulado.
Anadiômena
Aby Warburg [1866-1929,
historiador da arte] escreveu
que certas mulheres e certos jovens de Botticelli "parecem ter
a cabeça ainda toda sonora das
imagens que sonharam". As
moças de "Falsa Loura" são assim, habitadas por uma vida
onírica e espiritual.
No fim, a lente se aproxima
de Rosanne Mulholland, que
faz o papel de Silmara. Câmera
lenta. A brisa mexe, delicada,
nos cabelos cor de ouro. Então,
Silmara se torna gêmea da Vênus saindo das ondas, que o
grande Sandro pintou.
Happy ending
As garotas de Reichenbach
têm, em seu favor, a suave melancolia das vítimas. Nenhuma
violência física, nada do que
acontece nos filmes extremos e
perturbadores que o cineasta
admira tanto. Nelas está ausente a sexualidade imediata e popular que é própria às gostosas
violentadas, torturadas por José Mojica Marins, diretor querido de Reichenbach.
Carlão é um poeta delicado.
Estrela d'alva
Carlos Reichenbach gosta de
citações culturais elevadas.
Em "Falsa Loura" aparece de
vez em quando uma moça com
os seios de fora, recitando coisas complicadas, nas quais ninguém presta atenção. Há também escritos filosóficos, que pipocam aqui e ali. São bizantinismos, bobagens. O que conta
no filme não é esse cacoete secundário. Nem as metáforas
mecânicas, gastas, que também
surgem: banana e pênis ou penetração e túnel. Nem as alusões cinéfilas sublinhadas, às
quais o cineasta não resiste:
John Ford, por exemplo.
O início dá o tom. A tela mostra um escrito. O diretor foi
buscar Sócrates para nos ensinar, sentencioso, esta verdade
insigne: prazer e sofrimento
vêm juntos.
Logo depois, porém, inicia-se
o mais poético prelúdio cinematográfico que se possa imaginar. Maravilhosa panorâmica
sobre moradias pobres; em seguida, duas moças dançam.
Aí se revela então o grande, o
autêntico, Carlos Reichenbach.
Capaz de captar o ambiente e
de inserir, intuitivo, sutil, delicado, os personagens nesse
meio que ele desenha com mão
de mestre. Capaz de mostrar,
amoroso, sem obsessão carnal,
mas sem esvaziar o erotismo, a
beleza frágil dessas jovens.
Carlos Reichenbach, conhecido como "Carlão", é alto: uma
espécie de torre humana. Ora,
tudo o que essa torre filma torna-se leve, diáfano, aéreo,
transfigurado por uma poesia
que brota espontânea, natural,
sem rebuscamento.
jorgecoli@uol.com.br
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