São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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À MEIA DISTÂNCIA

Caio Caramico Soares
da Redação

A tradução de um texto de Brecht por Manuel Bandeira não foi o único fato inusitado que marcou a montagem de "O Círculo de Giz Caucasiano" no Teatro Nacional de Comédia (atual teatro Glauce Rocha), no Rio, em 1963. Segundo José Renato, 76, diretor do espetáculo, a idéia era ter o comediante Oscarito -estrela da chanchada nacional- em um dos papéis principais. Formado na primeira turma da Escola de Arte Dramática de São Paulo e co-fundador do Teatro Arena no início dos anos 50, José Renato comenta, na entrevista a seguir, o envolvimento de Bandeira na peça.

Como Brecht marcou sua formação?
Quando eu era aluno da Escola de Arte Dramática, nós fomos os primeiros a fazer Brecht na escola. A EAD foi inaugurada em 1948, e no ano seguinte nós fizemos um espetáculo de Brecht, "A Exceção e a Regra", dirigido por Alfredo Mesquita. Acho que foi a primeira vez que se fez Brecht aqui em São Paulo. Esse foi o meu primeiro contato com Brecht, que desde logo me fascinou. Mas a gente tinha uma certa dificuldade, pois estávamos na fase stanislavskiana. Depois disso, no Arena, tive ocasião de estudar mais profundamente Brecht. Fiz duas versões de "Os Fuzis da Senhora Carrá". Fiz também, depois do "Círculo de Giz", em 1964, a inauguração do teatro Ruth Escobar aqui em São Paulo, com a "Ópera dos Três Vinténs".
Como foi a escolha dessa peça?
A escolha das peças era feita por mim e pelo então diretor do Serviço Nacional de Teatro, Edmundo Moniz. O Serviço Nacional era subordinado ao ministro da Educação, Darcy Ribeiro, que nos apoiava muito. Podíamos contar com elencos grandes e muito bons, não havia economia de recursos, não havia problemas, porque havia grande interesse pelo teatro.
O que mais o motivou a trabalhar com "O Círculo de Giz Caucasiano"?
Além do interesse pelo tema, pela discussão da reforma agrária, o que mais me motivava era a possibilidade de que Oscarito (1906-1970) fizesse um dos personagens centrais, o juiz Azdak. Oscarito, durante dois meses, cozinhou a gente. Ele queria fazer, estava louco para fazer, mas ficou com muito medo, porque estava acostumado a fazer chanchadas e teria então de pegar um papel de enorme importância e fazer um tipo de teatro muito diferente. Na última hora, acabou não aceitando. Disse que tinha um problema de garganta. De fato, ele tinha esse problema, que mais tarde descobriu infelizmente que era um câncer na garganta. Ele não pôde fazer. Teria sido uma grande jogada, e foi um pouco por isso que a gente aceitou fazer a peça e a escolheu. No final, fizemos um concurso para escolher o ator para esse personagem. Descobrimos um ator do Nordeste [Alberico Bruno] que fez a peça muito bem e depois desapareceu.
A peça foi pioneira?
De certo modo, sim. Não se montava muito Brecht. Ele continua sendo muito difícil, muito complexo para os encenadores brasileiros. Mas o mais importante na montagem foi o seu sentido: popularizar Brecht. O texto foi encarado e traduzido de uma maneira muito inteligente pelo Manuel Bandeira. Ele teve a preocupação de evitar que o texto parecesse erudito demais. As traduções inglesas e francesas de Brecht tinham uma certa erudição. Bandeira, ao contrário, buscou que a peça ficasse ao alcance do público em geral, sem ser banal ou vulgar, mas que evitasse uma erudição vazia. A parte das canções foi a mais difícil, mas ele se desincumbiu disso muito bem, conseguiu versos livres que tinham uma grande facilidade de comunicação e eram muitos fáceis de ser cantados.
O espetáculo foi levado para outros lugares?
Não, ao contrário das montagens que fizemos de Nelson Rodrigues, Dias Gomes e de Chico de Assis, que levamos para todas as capitais brasileiras, "O Círculo de Giz" só foi montado no Teatro Nacional. Era uma montagem muito complicada, muita gente, muita cenografia.
Quanto tempo a peça ficou em cartaz?
Uns cinco, seis meses, não me lembro ao certo. Fizemos alguns cortes para que o espetáculo pudesse ter a duração normal da época, que era de duas horas e quinze, duas horas e vinte, no máximo.
E qual foi a participação de Bandeira no processo da montagem?
Na verdade, ele quase não saía de casa. O teatro ficava na avenida Rio Branco e ele morava perto da Maison de France, na avenida Beira-Mar. Eu ia às vezes ao apartamento dele buscar os trechos das canções em que ele estava trabalhando. Às vezes o Bandeira me lia certos trechos. Tinha sempre boa vontade. Foi à estréia, claro, e me disse que gostou do resultado, mas não estava presente nos ensaios. Nós conversamos depois disso, chegamos a pensar em novos projetos, principalmente Shakespeare, mas com o movimento de 1964 nossos caminhos se separaram.


Diretor da peça relembra a relação com Bandeira e diz que montagem previa a atuação do comediante Oscarito


Nessas discussões na casa dele o sr. dava sugestões sobre a melhor maneira de escrever certas passagens?
A gente conversava a respeito. Naturalmente eu era jovem e estava diante de um monstro sagrado, um poeta de altíssimo nível, que eu respeitava muito, mas ele era sempre muito delicado, muito gentil, acessível, extremamente sorridente, nunca tivemos nenhum problema.
Mas Bandeira chegou a dar sugestões para a montagem?
De modo geral, não. Ele tinha mais interesse pela parte poética, literária, e não pela teatral. Mas Bandeira achava que Brecht teria dificuldade para ser entendido em alguns momentos, por isso tomou a iniciativa de sugerir pequenas nuanças de tratamento das personagens, que abrandavam uma certa dureza do texto.
O uso por Bandeira de termos como "Virgemaria!" e "Cortem a cachola!" também indica essa vontade de tornar o texto mais acessível?
Exatamente. O distanciamento brechtiano não era, àquela altura, discutido nesse sentido literário. A gente usava o distanciamento na encenação, no trabalho com os atores, na linguagem cênica. Mas, quanto ao texto, o Manuel procurava fazê-lo chegar aos ouvidos do público de uma maneira direta, se empenhava em mostrar que a mensagem, a idéia fundamental de todas aquelas cenas, visava a mostrar um tipo de "caracteres", de personagens, que tinha o objetivo de exemplificar o que se discutia, ou seja, a posse da terra, a quem pertence a terra.
Para Bandeira, aquela tradução significava mais um ganha-pão ou dava para notar nele um entusiasmo pessoal pelas idéias de Brecht?
Bandeira tinha um engajamento superficial. Interessava-se pelos aspectos políticos, mas o grande interesse dele estava sempre voltado para a literatura. Não creio que ele tivesse um grande comprometimento com a presença de Brecht no teatro brasileiro, Brecht não era muito do setor dele.
Depois do espetáculo o sr. voltou a utilizar esse texto?
Sim. Há dois anos dou um curso de direção no teatro Sérgio Cardoso, pela Secretaria do Estado de SP, e utilizo muito o texto em discussões sobre o teatro de Brecht.
Houve um contato com o Berliner Ensemble (companhia teatral fundada por Brecht), que montara a peça em 1954, na Alemanha?
Houve um pedido de autorização da peça, mas não uma troca de idéias, embora tenhamos estudado a montagem alemã. A cenografia do Anísio Medeiros teve algumas indicações do Berliner Ensemble. O Instituto Alemão de Cultura nos passou algumas idéias sobre Brecht, sobre a Berlim da época.
E a música da versão alemã, de Paul Dessau, foi mantida?
A música, sim, foi inteiramente usada a música original, com algumas adaptações de orquestração por Geni Marcondes, diretora musical do espetáculo.
Tanto a tradução de Bandeira quanto a montagem do Teatro Nacional passaram relativamente despercebidas na literatura sobre Brecht no Brasil. A seu ver, por que isso ocorreu?
Não sei, acho que é um problema de organização. Quando houve o movimento militar de 64, todos esses bancos de memória do Ministério da Educação, numa seção na rua São José, no Rio [no endereço onde atualmente fica a Funarte", foram arrebentados. Sobrou bem pouca coisa. Eu dei fotos, programas e recortes para esse arquivo, e isso tudo desapareceu, ninguém sabe mais. A memória a cargo de pessoas e entidades particulares é muito mais bem guardada do que pela entidades públicas. Muita coisa foi rasgada ou abandonada por pessoas que temiam ser presas devido a ligações políticas.



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