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Jornalista alemão defende que Heiner Müller criou uma fantasia do Ocidente como barbárie civilizatória que prenunciaria a atitude antiamericana de intelectuais como Peter Sloterdijk
O TÉDIO DA DEMOCRACIA
José Galisi Filho
especial para a Folha
Na eleição de 1998, Gerhard Schroeder chegou
ao poder, propondo a construção de um "novo centro" político na Alemanha. Desde a criação da República Federal, em 1949, as
coalizões que conquistaram o centro do eleitorado
mantiveram a base de um consenso estável sobre o qual
a Alemanha reencontraria seu caminho para a unidade.
É com surpresa então que o novo livro do crítico de literatura e redator de política do diário "Die Zeit", Richard Herzinger, "Republik ohne Mitte" [República sem Centro, ed. Siedler], propõe a tese de que, desde a
reunificação das duas Alemanhas, em 1990, esse centro
meridiano da política está vazio, e essa tomada de consciência levaria finalmente a mudanças radicais na esfera
pública do país, sobretudo entre seus intelectuais.
O livro é também a síntese do pensamento de um dos
mais brilhantes intelectuais da nova geração de Berlim,
cuja carreira de jornalista teve como eixo um levantamento exaustivo das figuras do conservadorismo político alemão -em especial seu antiamericanismo- e começou com um trabalho acadêmico fulminante sobre o
dramaturgo Heiner Müller -"Masken der Lebensrevolution" (Máscaras da Revolução, ed. Wilhelm Fink,
1992). Herzinger buscava na obra de Müller aquilo que
o próprio autor apontava como as duas premissas de
seu trabalho: 1) distanciar suas idéias e visão de mundo
como um "material" da atualidade e descobrir, assim,
qual era o seu significado político real; e 2) julgá-la sem
tabus em razão disso, uma estratégia que Müller empregara sistematicamente com Brecht.
Distanciando-se de uma germanística desconstrutivista, descritiva e laudatória, que fizera da intertextualidade da obra e seus sistemas de auto-referências à tradição literária um quebra-cabeça do qual nenhuma citação escapava ilesa, Herzinger se propôs a traduzir a retórica monumental das imagens de Müller para o presente. Herzinger não acreditava que Müller tivesse superado as "premissas escatológicas" e "maniqueístas"
de uma "visão de mundo" arraigada na ex-República
Democrática Alemã (RDA) desde sua constituição, isto
é, uma visão antiocidental que se afirmara desde a luta
contra Brecht e o "formalismo" e que havia determinado a organização da esfera cultural na RDA.
Ao estalinizar o partido em todas as suas esferas no
início dos anos 50, Walter Ullbricht [1893-1973, estadista alemão que foi um dos responsáveis pela criação da
RDA e do Muro de Berlim" e seu grupo partiram na
época para uma campanha difamatória contra a obra
de Brecht e seus discípulos. E foi justamente nesse momento que a denúncia do "cosmopolitismo" representado pelo "barbarismo da cultura americana" mostrava
que, tanto à esquerda quanto à direita, havia uma unidade indissolúvel na tradição alemã de recusa ao Ocidente -e, durante a Guerra Fria, à América.
De fato, Herzinger mostra, na entrevista abaixo, como
Heiner Müller reaviva as principais coordenadas do
complexo cultural conservador da crítica civilizatória
alemã, a saber: a oposição entre cultura e civilização sob
o conceito de decadência; o ressentimento contra a sociedade liberal como lugar da massificação e comercialização da alma e do espírito; e sobretudo a recusa ao
Ocidente e a seu "imperialismo tecnológico", a partir da
qual surge a idéia alternativa de que o socialismo deveria opor uma "outra trilha temporal" e uma qualidade
mais "vital" e "orgânica". A busca incessante de Heiner
Müller por um "outro" e uma "diferença" na ruptura
do "continuum" benjaminiano encontraria assim os
mais eminentes fantasmas românticos.
Essas posições, longe de serem "críticas", legitimariam o socialismo real no seu ocaso. O mais interessante
no trabalho de Herzinger, contudo, é seu pressuposto
teórico: no exato momento em que o socialismo desaparecia, ele não via mais sentido em usar as coordenadas direita ou esquerda, preferindo se servir das categorias de ocidental ou antiocidental de modo a encontrar
um denominador comum diante da irracionalidade do
presente: terrorismo ecológico, nova e velha direitas etc.
Desde a reunificação, o sr. vem enfatizando a continuidade das figuras e dos sentimentos antiamericanos da inteligência alemã. Já em "Profetas dos Fins dos Tempos ou a Ofensiva dos Antiocidentais" (1995), o sr. descrevia esses
sentimentos que uniam direita e esquerda numa zona morta, marcada pelo refluxo do pensamento utópico. Quais seriam as figuras e os atores desse processo?
Comecei meu trabalho acadêmico sobre Heiner Müller no início dos 90 sob o pano de fundo dessa reviravolta, ou seja, a questão-chave do papel da Alemanha no mundo pós-Guerra Fria. Naquele momento,
a questão ainda levantava o fantasma do caminho
"alternativo" da Alemanha à modernidade como
"Sonderweg", isto é, o fascismo.
Era natural que, diante do rápido desabamento do
império soviético, a questão alemã estivesse na ordem do dia. Ninguém sabia, de fato, aonde levaria
aquela estrada. A Alemanha reunificada seria integrada finalmente ao sistema cultural ocidental, liberal, ou a Alemanha iria procurar novamente um alinhamento com o Leste, como no passado? Em outras palavras, retomaríamos o romantismo político
que nos conduziu à catástrofe ou seríamos um "novo centro" no coração da Europa, uma ponte entre o
Ocidente e o Leste? Como era natural, essa questão
não tinha uma resposta clara e até hoje permanece
em aberto.
No passado, a centralidade da Alemanha foi um fator que acentuou suas ambições hegemônicas no interior do continente e conduziu à catástrofe do nacional-socialismo. Com a divisão do país depois da
derrota e a assimilação compulsória de sua parte ocidental ao sistema de segurança da Otan (aliança militar ocidental), a República Federal iniciou um caminho democrático num sistema de valores liberal,
enquanto o outro lado permanecia atrelado à hegemonia do bloco soviético.
A Alemanha passa a se reconhecer depois da reunificação como parte constitutiva desse sistema ocidental, mas o que é o "Ocidente" depois da reunificação,
quando os blocos deixaram de existir? Até 20 anos
atrás, seria fácil responder à questão sobre onde ficava o Ocidente. Mas, com a desnacionalização dos Estados e a globalização, essa questão assume um novo
significado.
Como Heiner Müller se situaria nesse contexto?
Nos anos 70, surgiu na literatura da então RDA o que
se convencionou denominar de "mudança de paradigma civilizatório". Do ponto de vista da República Federal, parecia que essa mudança temática indicava uma atitude crítica e distanciada dos autores da inteligência leal da RDA à estagnação do socialismo real. Autores como Christa Wolf, Volker Braun e sobretudo Heiner Müller passaram a tematizar explicitamente em ensaios, romances e peças motivos básicos da crítica à civilização, com muitos pontos de
contato com a tradição frankfurtiana.
De que modo?
Christa Wolf, por exemplo, via
em "Cassandra" (ed. Estação
Liberdade) o patriarcado como
matriz do desenvolvimento catastrófico do Ocidente. Já em
Heiner Müller, vê-se isso com
toda a força em peças como "Filoctetes", mas sobretudo em
"Gundling" (uma peça sobre
Lessing e a relação entre o intelectual e o poder), que é uma tematização e criminalização nominal do Esclarecimento, como
fizeram Adorno e Horkheimer
na "Dialética do Esclarecimento" (ed. Jorge Zahar).
A minha tese, que acabou desencadeando uma polêmica
com essa crítica, é que essa "guinada" oposta à variante civilizatória tinha antes um caráter
conservador, à medida que essa
inteligência leal legitimava seus
privilégios, sacralizando o socialismo real e recuando à matriz do pensamento romântico alemão. Heiner Müller representava a consciência de um estamento intelectual da RDA que pretendia manter a utopia
de um socialismo "alternativo" depois do colapso do
Partido da Unidade Socialista, já que Müller era também, por sua vez, uma espécie de dissidência, porém
"integrada" dentro dessa inteligência.
A reunificação alemã foi experimentada por Müller
com um sentimento trágico, de profunda infelicidade pessoal. Ela representava para ele a anexação da
RDA à "plutocracia" do marco, ao ditado do Ocidente. Foi um grande golpe intelectual. Era como ser
ocupado por um Estado inimigo, por uma potência
estrangeira -como sua autobiografia "Guerra sem
Batalha" (ed. Estação Liberdade) comprova. Müller
repetia nesses anos que a "democracia era tediosa"
para um artista, pois a vitalidade artística dependeria
daquilo que ele denominava a "pressão da experiência autêntica", uma idéia benjaminiana recorrente
em Müller.
Ora, a democracia é tudo, menos "tediosa". A democracia formal, que ele desprezava, era sinônimo de
"consumo", do entorpecimento da sensibilidade pela indústria cultural, pois a história do socialismo
real fora feita de "sacrifícios" e então, com o desaparecimento da RDA, desapareceria também a memória dessa proclamada "experiência autêntica" do fascismo, que essa inteligência leal encarnava e ritualizava. Por trás desse acentos pessoais, a questão é saber o que se esconde nessa visão de mundo não apenas em Heiner Müller mas também na inteligência
leal da RDA: uma fantasia maniqueísta do Ocidente
como barbárie civilizatória.
Ora, esse tema se vinculava de maneira inequívoca
aos motivos românticos da crítica à civilização. O
Ocidente, para Müller, seria assim a "puta Babilônia" do consumo, dos dejetos das "grandes idéias",
com o fim da "experiência autêntica" que o socialismo realmente existente supostamente representaria.
O que mudou neste caráter antiocidental da inteligência
alemã depois do 11 de setembro?
Para minha surpresa, o 11 de setembro mostrou finalmente, de maneira cabal, que esses sentimentos de aversão ao sistema ocidental da Alemanha estão
mais disseminados entre a população do que se supunha. O ressentimento intelectual é parte de um
complexo de inferioridade e medo, vale a pena analisá-lo. Montou-se uma verdadeira operação de guerra durante a visita de Bush a Berlim. Esse antiamericanismo é mais forte do que se pensava.
E por que esse sentimento?
Esse sentimento indica duas coisas: em primeiro lugar, um complexo de inferioridade em ser dominado pela América, já que a Europa não consegue definir claramente qual é o seu papel neste novo mundo.
Mas é um sentimento ambíguo, pois nunca houve
nenhuma época da história européia em que houvesse tanta liberdade e conforto, sem nenhuma guerra, com a exceção dos conflitos nos Balcãs. É
ambíguo porque a idade de ouro da Europa foi a idade de ouro da "pax americana". Foi sob a tutela americana que nós, alemães, atingimos esse patamar social. É um mal-estar por se beneficiar dos efeitos indiretos dessa pax, mas também pela impotência que
isso significa.
Por outro lado, o antiamericanismo traz em seu cerne um complexo de medo atávico, pois para a população os ataques de 11 de setembro dizem respeito
apenas aos EUA. Ou seja, medo e inferioridade se
combinam. A idéia é: se permanecermos neutros,
não seremos atacados, pois não temos nada a ver
com eles, somos apenas alemães.
Mas no campo intelectual surgiu desde o 11 de setembro uma busca desesperada pela culpa dos americanos. Essa é a razão que leva Günter Grass, Peter
Sloterdijk e Walter Jens -a maioria esmagadora da
intelectualidade alemã, de maneira grotesca- a pôr
a culpa nos EUA, no "imperialismo" e na "unilateralidade" do governo Bush pelo que aconteceu em 11
de setembro.
Eu particularmente fico impressionado com o que
ouvi, com a falta de sensibilidade moral e intelectual
de algumas pessoas que considero inteligentes, como Grass. Ele lamenta que tenham morrido 3.000
inocentes civis americanos, mas no cálculo dele isso
não é nada diante das vítimas da fome causadas pela
"pax americana".
Lamento, como alemão, que Grass não tenha nem
sequer entendido que a sociedade americana é completamente heterogênea, que ela não apóia as medidas unilaterais de seu governo. Essa cegueira diante
da realidade é um forte distúrbio neurótico no qual o
medo nos leva a conjurar velhos fantasmas e a achar
argumentos -por mais absurdos que sejam- que
mais uma vez nos afastam do real.
José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na Alemanha, e autor de "Uma Introdução ao Conceito de Material na Poética de Heiner Müller" (ed. Internacionalismus).
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