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Reedições de "Em Busca do Tempo Perdido" e de estudos sobre o romance apontam
para uma redescoberta do escritor francês no Brasil
NOVOS CAMINHOS DE PROUST
Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha
Ninguém diria, mas o Brasil já
foi fértil solo para estudos proustianos. Lia-se muito Marcel Proust (1871-1922), e seus livros, obrigatoriamente importados, encontravam acolhida. O campo era tão propício que no final dos anos 40 a editora Globo, de Porto Alegre, encomendou -grandiosa tarefa- a tradução de "Em
Busca do Tempo Perdido" a alguns dos
maiores escritores brasileiros.
Para tanto, a casa se valeu da experiência fora do comum de estar publicando
"A Comédia Humana", de Balzac, entre
1945 e 1955, em 17 volumes. O empreendimento Balzac foi orquestrado por Paulo Rónai, que coordenou a equipe de tradutores e selecionou pessoalmente as introduções dentre o que de melhor havia
na crítica internacional. Já a "Recherche"
sairia em sete volumes, divisão assentada
na França.
Hoje olhamos para a lista dos tradutores... e pasmamos. Mário Quintana responsabilizou-se pelos quatro primeiros
volumes: "No Caminho de Swann", "À
Sombra das Raparigas em Flor", "O Caminho de Guermantes" e "Sodoma e Gomorra". O quinto volume, "A Prisioneira", caberia a Manuel Bandeira; o sexto,
"A Fugitiva", a Carlos Drummond de
Andrade; e o sétimo e último, "O Tempo
Redescoberto", a Lúcia Miguel Pereira.
As traduções começaram a vir à luz em
1948. Não se pode dizer, é claro, que
Proust chegasse jamais a ser propriamente popular. Mas o fato é que sucessivas tiragens da Globo se esgotaram, estando a obra hoje na 21ª edição.
Meio século depois, em 1993, a Ediouro
traria a público uma nova tradução, também em sete volumes, feita por Fernando Py. Depois de revista, uma segunda
edição está sendo lançada agora, com o
formato modificado para três volumes.
O que nos coloca na posição privilegiada
de possuirmos não só uma, mas duas diferentes traduções da "Recherche" em
português do Brasil.
Aqui, no capítulo das traduções incontornáveis que toda literatura deveria
possuir, dentre as formadoras do século
20 como a de Proust, já contamos com as
duas mais difíceis de James Joyce: a de
"Ulisses" (ed. Civilização Brasileira), feita por Antonio Houaiss nos anos 60 e,
em andamento, a de "Finnicius Revém",
transcriação de "Finnegans Wake" assinada por Donaldo Schüler (ed. Ateliê).
Dos anos 1930 aos 60, todos os nossos
maiores críticos escreviam sobre Proust
em artigos de jornal, que depois seriam
recolhidos em livros. Entre eles, contam-se Antonio Candido, Sérgio Buarque de
Holanda, Tristão de Ataíde, Augusto
Meyer, Brito Broca, Paulo Rónai, Otto
Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Milliet... A exceção é
Mário de Andrade, o qual, apesar de leitor e admirador, não chegaria a deixar
um artigo diretamente sobre o tema. Durante longo tempo, crítico brasileiro que
se prezasse frequentava Proust: é só folhear as coletâneas de seus ensaios. E,
mesmo antes do período indicado, o primeiro profissional de calibre a devotar-se a análises mais abalizadas foi Tristão
de Ataíde, em artigos ainda nos anos 20
que depois seriam recolhidos nas cinco
séries de seus "Estudos" (1927-1933).
Um grande proustiano, pouco reconhecido por não ser crítico literário de
profissão, foi Ruy Coelho. Ele participou
da célebre revista "Clima", feita por um
grupo de jovens de 20 anos, na qual seriam definidas vocações de críticos como
a de Antonio Candido para a literatura,
Décio de Almeida Prado para o teatro,
Paulo Emílio Salles Gomes para o cinema, Lourival Gomes Machado para as
artes plásticas, Gilda de Mello e Souza
para a estética.
Ruy Coelho foi co-fundador e membro
atuante desde o primeiro até o último
dos 16 números da revista, em que estrearia com "Marcel Proust e a Nossa
Época". Saindo no primeiro número, em
maio de 1941, seria, nas suas 45 páginas,
bem mais que um artigo. Apareceria depois em forma de livro, com o título reduzido para "Proust" (ed. Flama, 1944).
E não era nada de mais ver um crítico militante como Álvaro Lins apresentar-se a concurso para provimento de uma cátedra de literatura no colégio Pedro
2º, no Rio de Janeiro, em 1950, com tese intitulada "Da Técnica do Romance em
Marcel Proust". Tampouco era surpreendente que a tese se transformasse
em livro, o que ocorreu em 1956, pela José Olympio, com o título ligeiramente
alterado pela retirada da preposição ("A
Técnica..."). Na década seguinte, em
1968, a Civilização Brasileira reeditaria o
livro, sem mexer-lhe no título.
Contato precoce
Em 1959 surgiria "Compreensão de Proust", de Alcântara Silveira, pela José Olympio, que receberia resenha de um proustiano de vida
inteira, Antonio Candido, no "Suplemento Literário" de "O Estado de S.
Paulo". O mesmo crítico faria nesse órgão outras resenhas relacionadas ao assunto, inclusive a de "Mon Amitié avec
Marcel Proust - Souvenirs et Lettres
Inédits" [Minha Amizade com Marcel
Proust - Lembranças e Cartas Inéditas",
reminiscências de Ferdinand Gregh,
amigo pessoal do escritor, publicado
em 1958; e a de uma biografia canônica,
de autoria do inglês George Painter, de
1959. Leyla Perrone-Moisés, titular da
seção de letras francesas no período de
fastígio do suplemento, no decênio
(1956-1967) em que Décio de Almeida
Prado o dirigiu consoante o projeto de
Antonio Candido, várias vezes teria
oportunidade de referir-se ao autor.
Ainda em 1964 Hermenegildo de Sá
Cavalcante, fundador da Sociedade
Brasileira dos Amigos de Marcel Proust
e mais tarde autor de "Marcel Proust
-Roteiro Crítico e Sentimental" (1986,
ed. Pallas), coordenaria a Semana
Proustiana, realizada no Rio de Janeiro
com a presença da sobrinha do escritor,
Suzy Mante Proust, filha de seu único
irmão, Robert.
Pouco lembramos que o Brasil conheceu precocemente a "Recherche". Devemos ao poeta alagoano Jorge de Lima
as alvíssaras, conforme relata o supracitado proustiano. O ano
era 1919 e o autor francês
acabara de receber o prêmio Goncourt por "À
l'Ombre des Jeunes Filles
en Fleur", que já não era
o primeiro da saga, mas
despertara menos rejeições ou estranhezas de
leitura que o anterior.
Como é que Jorge de Lima, na remota Maceió,
tomou conhecimento da
obra? Aviadores franceses, ao atravessar o Atlântico, faziam
habitualmente escala na base aérea da
cidade, onde Jorge de Lima, que era médico, os examinava e tomava de empréstimo as últimas novidades das livrarias de Paris. A notícia é, todavia,
contestada por outros que disputam as
primícias da revelação, tanto em Belo
Horizonte quanto no Rio.
Com o passar do tempo, aos poucos
esse veio, fundamental para a melhor literatura, foi secando e os estudos foram
minguando. É possível que o encerramento da língua francesa no secundário
e a sua transformação em "língua instrumental" na universidade tenham
muito a ver com esse processo.
Por outro lado, pode-se apontar outro
fator no empobrecimento e quase extinção da crítica literária em periódicos,
substituída que foi pelo "press realease"
e pela resenha de livros novos. É uma
pena, pois mais pessoas deixam de ter a
oportunidade de informação e de acesso a um dos mais notáveis feitos da alta
literatura que a humanidade já viu, privando-se assim de um prazer incomparável.
Entretanto nem tudo está perdido. Há
uma tese de doutoramento defendida
em Porto Alegre, em 1993, lamentavelmente até hoje inédita, da autoria de M.
Marta L.P. Oliveira, sobre a recepção
crítica brasileira do nosso autor. E neste
ano dois fatos auspiciosos dão aos
proustianos brasileiros bons motivos
para celebrar. Coincidindo com a nova edição
revista da tradução assinada por Fernando Py,
sai também, e em boa
hora, "A Educação Sentimental em Proust"
(após "Proust, Poeta e
Psicanalista", de 2000,
pela Ateliê), de Philippe
Willemart, professor titular de francês na USP.
Especialmente quando
nos damos conta de que
há muito não surgia no país um livro sobre a "Recherche".
A pessoa de Proust sempre foi uma
mina para os interessados na crônica
oficiosa das letras e das artes. Afinal, ele
era um Édipo de não botar defeito, apegado à mãe, asmático e homossexual,
além de recluso na última fase da vida:
tudo isso abrindo o flanco para prospecções nas zonas turvas da alma.
Tais traços biográficos ficam ainda
mais evidentes no romance, quando se
constata -mais leal à sua imaginação
que aos fatos, aliás dever do artista-
quanto a mãe e a avó são presenças
avassaladoras. Em compensação, o pai
mal aparece, e ele mesmo faz de conta
que é filho único, sequestrando num
passe de mágica seu dedicadíssimo irmão Robert. Este, médico como o pai de
ambos, cuidou de Marcel até a morte e
depois ainda foi o primeiro a editar parte de sua correspondência. O escritor
era um missivista compulsivo; bem
mais tarde, quando a integral de suas
cartas fosse publicada, preencheriam
elas a enormidade de 21 volumes.
Hoje, na França, os estudos proustianos, sempre vivazes, receberam alento
revivificador advindo dos trabalhos de
Jean-Yves Tadié, que preparou na década de 90 uma monumental nova edição
crítica pela Pléiade e uma biografia de
quase mil páginas recheada de revelações, "Marcel Proust" (1996, ed. Gallimard). A produção da crítica genética
tem contribuído de modo similar para
redourar os brasões desses estudos,
com destaque para o labor do Grupo
Proust do "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (Item). Já entre
nós, nem somos capazes de precisar há
quanto tempo não se escrevia um livro
inteiro sobre Proust. Estaríamos agora
assistindo aos primeiros sinais de uma
ressurreição? Façamos votos de que seja
esse o caso.
Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros, "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).
Em Busca do Tempo Perdido
R$ 149,00 (a caixa) de Marcel Proust. Trad. Fernando Py. Ediouro (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, tel. 0/xx/21/ 3882-8200).
Sete volumes (de R$ 20,50 a R$ 35,00 o volume) Marcel Proust. Vários tradutores. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, SP, tel. 0/xx/11/ 3362-2000).
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