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No primeiro volume da trilogia "O Gênio Feminino", Julia Kristeva
analisa o percurso intelectual da filósofa Hannah Arendt
O longo século das mulheres
Newton Bignotto
especial para a Folha
O que Hannah Arendt, Melanie
Klein e Colette têm em comum? A trilogia de Julia Kristeva pretende oferecer uma resposta a essa pergunta a partir da consideração do que ela chama de gênio feminino. Unidas por suas realizações excepcionais no campo da reflexão política, da
psicanálise e da literatura, elas teriam
juntas posto um fim à dominação masculina, quase exclusiva, no panteão dos
seres de exceção, que parecem capazes
de nos impedir de "morrer de igualdade
num mundo sem o mais-além". Filhas
do século 20, essas mulheres parecem irromper no cenário mundial de fora dos
esquemas tradicionais de preparação e
proteção aos realizadores: as instituições, as escolas, os partidos. Escolhidas
por suas obras e ações, elas encarnam o
modelo do que seria uma mulher de exceção, uma genialidade feminina, que
Kristeva faz questão de situar no coração
de um século que extrapolou todos os caminhos que foram trilhados pelas sociedades modernas tanto no domínio da
política, com suas monstruosidades totalitárias, quanto naquele da literatura e
da ciência, com suas realizações espetaculares.
A escolha das três figuras femininas
não parece despropositada ao leitor, sobretudo se considerarmos a importância
individual de suas obras. Mas, tomadas
sem maiores explicações como modelos,
fica a impressão de que participam da cena mundial por uma espécie de escolha
do destino e que são pioneiras absolutas
da participação das mulheres na vida literária e científica. A lembrança de
Christine de Pisan [escritora italiana,
1364-1430", que em pleno século 15 tomou a defesa das mulheres contra os ataques satíricos de Jean de Meun [poeta
francesa, 1240-1305" e se interessou por
temas tão amplos quanto a moral e a política, ou a investida de Margarida de Navarra [escritora francesa, 1492-1549", autora do "Heptameron", por terrenos literários de vanguarda em sua época mostram que o território masculino da genialidade começou a ser ameaçado por
mulheres desde o momento em que a
eclosão da individualidade no Renascimento criou as condições para que artistas e escritores fossem considerados dignos de serem destacados por uma superioridade sem contestação em relação
aos outros homens.
Literatura de gênero, como reconhece
a autora, a primeira parte do livro, dedicada a Hannah Arendt e que estamos
analisando aqui, não escorrega nunca
nos excessos dos que querem a todo o
custo descobrir aspectos
femininos no que por vezes é simplesmente a manifestação de um talento
sem distinção de sexo. Isso não quer dizer, no entanto, que para Kristeva
seja indiferente o fato de
Hannah Arendt ser mulher num meio masculino. O que o livro tem de melhor é o fato
de que ela visita os grandes temas do
pensamento arendtiano com olhos diferentes dos muitos intérpretes que nos últimos anos se debruçaram sobre a vida e
a obra da pensadora judia. Não se trata,
na verdade, de fazer grandes descobertas
no terreno biográfico, no qual a autora é
devedora do ótimo livro de Elisabeth
Young-Bruehl [psicanalista e autora de
"Hanna Arendt -For Love
of the Wold", ou de recorrer a fontes desconhecidas para esclarecer o leitor
quanto ao sentido dos
principais conceitos criados por Arendt. O que a
intérprete visa é produzir
um estranhamento quanto às origens das reflexões
da filósofa de forma a destacar uma originalidade que não pode ser inteiramente compreendida sem a referência à condição de mulher judia, que marcou a trajetória de uma pensadora tão pouco interessada ela mesma nos temas feministas
de sua época.
Para Arendt a narração é um ato essencial da vida na cidade, pois só ela confere
sentido a um mundo que de outra maneira permaneceria opaco e intransponível para seus atores. Como resume a intérprete: "A narração conta, mas a ação
vence, com a condição de que seja uma
ação narrada" (pág. 74). Fiel aos pressupostos da própria autora que analisa,
Kristeva escolhe narrar sua vida, estudar
suas ações e seus laços com o mundo, para aí talvez descobrir as brechas de sua
exceção. Não é, portanto, à caça de traços
universais de uma condição feminina
abstrata que ela se lança. O que sobretudo lhe interessa é narrar a trajetória de uma mulher no confronto com o desatino de sua época.
Talvez devido à escolha desse caminho, as partes mais instigantes do livro
não são as dedicadas às grandes obras de
Hannah Arendt, como "A Condição Humana" (ed. Forense Universitária), impropriamente traduzida para o francês
como "A Condição do Homem Moderno", ou "A Vida do Espírito" (ed. Relume-Dumará), mas àquelas nas quais ela restitui o vigor a escritos como aquele sobre "O Conceito de Amor em Agostinho" ou à biografia de Rahel Varnhagen. Narrados no contexto de uma vida que se nutre de seu tempo e se enlaça nas tramas de suas escolhas, eles ajudam a entender o nascimento de uma obra transformadora do panorama intelectual do século passado.
O livro reserva poucas surpresas para os que se interessam antes de tudo pelo
significado da revolução operada pela obra de Arendt no terreno da teoria política, mas oferece um panorama cativante para os que desejam mergulhar nos interstícios da vida e da obra dessa que foi seguramente a maior pensadora do século 20.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (ed. UFMG).
O Gênio Feminino -
Hannah Arendt
240 págs., R$ 37,00
de Julia Kristeva. Trad. Eduardo
Francisco Alves. Editora Rocco
(r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar,
CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/
2507-2000).
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