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+ brasil 504 d.C.
O embaraço da forma
Ensaios reunidos no livro "Tempo
de Clima", escritos ao longo dos anos 40, revelam a precocidade
do antropólogo Ruy Coelho
Soa inexplicável que Ruy Coelho não pareça ter dado um grande salto; terá sido a falta de estímulo de um ambiente intelectual acanhado?
Luiz Costa Lima
A
reunião dos artigos que Ruy
Coelho (1920-90) escrevera para
a revista "Clima" (1941-44) em
"Tempo de Clima" (ed. Perspectiva) torna flagrante a falta de uma história da crítica no Brasil pós-década de
1930. Estabeleço essa demarcação curta
porque, quanto ao passado próximo,
dispomos do estudo de Roberto Acízelo
sobre a perduração da retórica em plena
segunda metade do século 19, dos ensaios de Antonio Candido sobre Sílvio
Romero, de João Alexandre Barbosa sobre Veríssimo e do livro de José Luiz Lafetá sobre a crítica na década de 1930.
A rigor, a falta é mais ampla: de uma
obra, possivelmente coletiva, sobre o
exercício da crítica a partir da revista
"Niterói". Enquanto não se cumprir um
ou outro projeto, continuaremos sujeitos ao esquecimento de figuras como
Ruy Coelho, para não dizer de toda a revista de que fora colaborador.
Insanável lacuna
Ora, a impossibilidade generalizada de acesso aos números de "Clima" provoca uma insanável
lacuna: já assinalou Leda Tenorio da Mata, em ""Clima" e "Noigandres" - A Crítica
Literária Brasileira entre Dois Fogos"
(Colóquio/Letras, janeiro-junho 1988),
que "Clima" e "Invenção" (1962-6) foram os porta-vozes das duas correntes
que têm dominado a compreensão do fenômeno literário entre nós: aquelas que,
respectivamente, enfatizam os princípios de "formação" e de "transformação". Enquanto essa carência subsistir,
"Tempo de Clima" terá a função complementar de divulgar as idéias de um dos
melhores participantes da direção, que
encontraria em Antonio Candido o nome mais marcante.
Das duas partes que formam o livro
-"Literatura e Arte" e "Cinema", além
de uma pequena "nota política"-, a primeira é a decisiva. E, dentro dela, o ensaio, relativamente longo, sobre Proust.
Não se estranhe, pois, que nele nos concentremos. Apontemos, de imediato, para duas surpresas que nos reserva: (a) sabendo-se que fora escrito quando o autor mal completara 20 anos, é não só espantosa a bibliografia com que lida, como a capacidade argumentativa que desenvolve. Por isso mesmo (b) soa inexplicável que, após sua publicação (1941),
o autor não pareça haver dado algum
grande salto intelectual.
Terá sido porque, encaminhando-se
para a antropologia, em que se doutoraria em 1954, deixou de ter na literatura
seu interesse principal, como sucederia,
nos anos de 1950, com Sérgio Buarque de
Holanda? Ou a razão subsidiária terá sido a falta de estímulo de um ambiente
intelectual acanhado? Na impossibilidade de examinar a hipótese, limito-me a considerar
a surpresa positiva.
Embora o ensaio destacado siga o formato habitual -vida, obra,
idéias- já a primeira parte surpreende pela inteligência com que
é feita. Ruy Coelho preocupava-se menos com uma contextualização convencional do que em dela captar os ingredientes sociopolíticos que se entranharam na formação e obra do romancista
francês. Destaque-se o dado: depois da
derrota e queda de Napoleão 3º, em 1871,
a solução democrática adotada não era
"propriamente (uma) forma fixa de organização", mas sim um "estado de coisas provisório".
A formação de Proust, nascido em
1871, então se dá sob uma disposição política marcada pela transitoriedade.
Mais ainda: se a aristocracia ainda
mantinha algo de seu antigo prestígio,
seu aburguesamento, bastante anterior,
ou sua substituição pelos "nouveaux-riches" se mostrava nos próprios salões
frequentados pelo frágil dândi doente.
Dos antigos ideais, de proveniência romântica, só perdurava o culto da arte. A
proposta da "obra de arte conjunta" de
Wagner e o prestígio dos festivais de
Bayreuth bem o dizem. É todo "um organismo social que agoniza". Dele, acrescenta Ruy Coelho, Proust será "o cronista da decadência".
À agudeza da percepção socioistórica
que assim o intérprete manifestava se
acrescentaria sua vasta leitura psicanalítica. Ela tem por alvo iluminar a maneira,
dolorosa, mas lúcida, masoquista, mas
não menos criadora, como Proust manifestaria sua homossexualidade. Mostrando uma inteligência tão rara nas
abordagens psicanalíticas da literatura,
em instante algum o jovem intérprete
encarará a obra proustiana como ilustração de complexos e recalques. Ao contrário, chegará a corrigir um dos intérpretes: a obra de Proust, em vez de promover a "domesticação do inconsciente", é sua liberadora.
Pois ainda seríamos injustos com o autor se apenas atentássemos para sua riqueza de leituras. Faltaria acrescentar
que não se põe como seu divulgador,
mas é um interlocutor capaz de discordância. É então guiado por uma coragem
inteligente que o levará, noutro artigo, a
criticar "Os Condenados", de Oswald de
Andrade. Assim, voltando ao "Proust",
em vez da afirmação corriqueira que
acentua o débito do romancista a Bergson, do alto de seus 20 anos, Ruy Coelho
ressaltava a diferença da concepção
bergsoniana do tempo da que prevalece
na "Recherche". Aqui, o tempo é antes
"espacializado" do que fluido, constituindo sedimentos psíquicos compartimentados. "Cada porção do passado, em
lugar de ser assimilada, refletida, formar
parte integrante do psiquismo, fica solta,
sem emprego. Quando evocada, como
um frasco destapado, faz reviver toda a
situação emotiva que a animou, "reconhecer a camada psíquica a que pertence". Espacializado, o tempo assume em
Proust um "interesse geológico".
Coragem problemática
Em síntese, informação abundante, capacidade
argumentativa, ausência de servilismo,
atenção para o jogo entre condicionantes
históricas e relativa autonomia da modelagem da forma eram as marcas do jovem e brilhante autor. A coragem há
pouco aludida volta a se explicitar no fim
do ensaio, de modo entretanto problemático. Depois de examinar o quanto a
conjuntura européia provocava a proximidade de formulações de Proust com as
de Schopenhauer e Nietzsche, concluía:
"O que é explicável em Proust, é inadmissível na época atual". O inadmissível
era o apoliticismo do romancista. Independentemente de sua pouca idade,
compreende-se o quanto a contemporaneidade da Segunda Guerra pesava em
seu julgamento.
Pois uma maior distância temporal
mostraria que a obra proustiana não era
tão apolítica quanto seu próprio autor.
Essa ressalva seria desconsiderável se
não assinalasse, em um intérprete tão
promissor, uma lacuna: o embaraço em
surpreender a força formante da forma.
Como não há espaço
para desenvolver a idéia,
apenas aponto para outro
sinal da mesma falha: o
tratamento da poesia. O
único artigo dedicado a um poeta é o que
consagra ao português Antonio Botto.
Sua escassez seria de somenos se o intérprete não se limitasse a reunir impressões que não penetram na configuração
poemática, aliás bastante tradicional, de
Botto. Seria essa menor sensibilidade ao
poético não tradicional exclusiva de nosso crítico? Ou era um traço do grupo a
que pertencia?
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor
de "Intervenções" (Edusp), entre outros. Escreve
na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).
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