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Ponto de fuga
O senhor do anel
O ciclo
"O Anel do Nibelungo", no festival de Bayreuth, foi uma lição de como os resultados da ópera podem surpreender: a arquiban-cada dura,
o calor do verão na sala não refrigerada tornaram-se crueldade desumana
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Assistir a uma ópera pode
arrebatar ou se transformar numa sessão de
tortura. Dá certo, ou não, sem
que a qualidade dos intérpretes
explique tudo.
O ciclo "O Anel do Nibelungo", de Richard Wagner, apresentado no Festival de Bayreuth [Alemanha] deste ano,
foi uma lição de como os resultados podem surpreender.
Trata-se de quatro representações em quatro dias. O prólogo é "O Ouro do Reno". Abriu-se com um cenário prodigioso:
o fundo do rio parecia estar ali,
no palco. Mas a regência de
Christian Thielemann, sem relevo, eliminou todo o fascínio.
"O Ouro do Reno" é breve
para os critérios da lentidão
wagneriana: tem um ato só que
demora... duas horas e 35 minutos. A arquibancada dura, o
calor do verão na sala não refrigerada tornaram-se crueldade
desumana.
"A Valquíria", ópera seguinte, teve Eva-Maria Westbroek,
cantora excepcional e comovente no papel de Sieglinde.
Mas eis que surge Linda Watson como Brünnhilde, a valquíria do título. Ela tem o físico
que de hábito se atribui às cantoras de ópera. Forçou a voz,
desafinou: terrível.
Depois, no terceiro dia, vem
"Siegfried". Calamidade. O tenor Stephen Gould, o herói, rivalizava com os defeitos de
Brünnhilde.
Assim, o medo diante das
quase cinco horas que dura "O
Crepúsculo dos Deuses" era
grande. Pois bem, nessa última
ópera do ciclo, tudo mudou:
Linda Watson estava transfigurada e parecia outra cantora.
Enfrentou seu terrível papel
como uma grande intérprete.
Sua aparência não importava
mais. O tenor, Stephen Gould,
se não atingiu o mesmo nível,
controlou a voz e defendeu-se
com honra. A orquestra deixou
sua apatia e se entusiasmou,
admirável.
Ópera é um gênero cheio de
mistérios.
Painel
Tankred Dorst, diretor de
teatro alemão, foi responsável
pela montagem de "O Anel do
Nibelungo" em Bayreuth. Nos
cenários mágicos de Frank Philipp Schlössman, imaginou que
a história contada por Wagner,
cheia de deuses, gnomos, dragões, anéis e espadas mágicas,
se passasse num universo paralelo. A parede de uma usina
contemporânea se abria para
revelar a caverna dos nibelungos e o primeiro ato de "Siegfried" transcorreu numa escola
abandonada.
Incógnitas
Tankred Dorst não resistiu a
bizantinismos enigmáticos.
Encheu o palácio de Gunther
com sapatos femininos, fez correr um personagem vestido de
galo no meio da cena, e o Valhala, morada dos deuses, era representado por um olho.
Cio
Ópera é feita, sobretudo, de
crimes, violência, erotismo, obsessões, crueldades. Por isso
mesmo tem muito em comum
com o cinema chamado de "terror", normalmente desprezado
por pessoas cultas.
O teatro estatal da Ópera de
Munique apresentou "Salomé", composta por Richard
Strauss sobre o texto de Oscar
Wilde, que é saturado de devassidões, luxos e horrores.
O maestro Kent Nagano extraiu da orquestra os sons mais
voluptuosos.
Numa associação aparentemente insólita, William Friedkin, diretor de cinema, autor do
célebre "O Exorcista", fez a
montagem. Ele a inscreveu
num hall moderno e frio, como
o de certos bancos ou aeroportos. Por vezes, no chão liso rasgava-se uma ravina: era a prisão
do profeta.
Angela Denoke, esplêndida
em seu canto, muito sedutora,
apresentou-se num vestido
contemporâneo, longo e negro.
Quando termina a dança dos
sete véus, expõe seus seios a
Herodes e ao público. Beija,
erótica, a cabeça cortada de
João Batista. No final, em vez
de ser esmagada pelos escudos,
como manda o libreto, é, ela
também, decapitada.
jorgecoli@uol.com.br
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