|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cinema
Os EUA de "América, América" e "Movidos pelo Ódio", de Elia Kazan, ainda
podem sobrepujar o país retratado em "Elefante" e "Sobre Meninos e Lobos"
O predomínio da violência
Luiz Carlos Bresser-Pereira
especial para a Folha
Enquanto os cientistas sociais e os
filósofos tentam compreender racionalmente a vida social, os artistas projetam em suas obras sua visão do mundo. De um mundo complexo, multifacetado e ambíguo, do qual
eles não podem senão identificar aspectos, que, no entanto, podem ganhar uma
grandeza inesperada quando o artista é
verdadeiro. Os cineastas, em particular,
têm uma possibilidade ímpar de revelar
o mundo e a vida através do meio poderoso que é o das imagens e o das palavras, conjugadas em um espaço e em um
tempo que eles próprios manipulam.
Os cineastas americanos têm usado essas potencialidades com grande força.
Seja para fazer a ideologia da sociedade
americana, seja para fazer sua crítica.
Nos últimos tempos, a ideologia ficou reservada a filmes menores, enquanto a
crítica aparece com força cada vez maior.
Um aspecto particular do grande cinema americano é o fato de que os filmes
são obras de arte coletivas. O cinema de
autor, que caracteriza, por exemplo, o cinema brasileiro ou o francês ou o iraniano, é mais raro nos Estados Unidos.
Também existe, especialmente nas obras
marginais, que disputam reconhecimento no Festival de Sundance, e em alguns
momentos atinge um nível maior, como
é o caso de "Elefante", mas seu autor,
Gus van Sant, é também um homem do
grande cinema comercial de Hollywood.
Coletividade
Muitas vezes temos a
tendência a supor que o verdadeiro cinema, que produz obras-primas, é sempre
o cinema de autor. É o cinema de Bergman, de Fellini, de Glauber. Mas, desde
os grandes filmes de D.W. Griffith, nos
albores da história do cinema, isso não é
verdade. E quem, por exemplo, é o autor
de "Cantando na Chuva"? Mesmo os
grandes diretores americanos, como
John Ford ou Hitchcock, não fizeram um
cinema propriamente de autor, já que
não são os autores da história e do roteiro. À medida, porém, que são obras coletivas, os filmes talvez tenham mais capacidade de expressar a sociedade da qual
são produtos.
O último grande filme que o cinema
americano produziu é "Sobre Meninos e
Lobos" ["Mystic River", que estreou anteontem em SP]. É assinado por Clint
Eastwood, que merece o título de grande
diretor com essa segunda obra-prima
que dirige, mas sua extraordinária força
é o resultado de um trabalho coletivo no
qual não apenas os atores, mas os demais
participantes, particularmente os roteiristas, têm um papel fundamental.
Entre "Elefante" e "Sobre Meninos e
Lobos", revi "América, América" [1963]
e "Movidos pelo Ódio" ["The Arrangement", 1969], de Elia Kazan [1909-2003].
Este fez tanto cinema de autor quanto filmes coletivos. Os dois filmes, dos anos
60, são um poderoso retrato da esperança e da realidade representadas pelos Estados Unidos. A esperança aparece com
todo vigor em "América, América".
Embora a esperança se refira aos Estados Unidos do início do século 20, quando o imigrante grego parte da Turquia,
onde os gregos eram minoria importante e perseguida, e, depois de uma odisséia, chega à América, se trata também
de uma esperança do momento em que
o filme foi concebido e produzido.
Já nos Estados Unidos de "Movidos pelo Ódio", a esperança ainda existe, mas o
essencial é a realidade material, voltada
para o dinheiro, único veículo de realização em uma sociedade individualista, na
qual a idéia de solidariedade parece esquecida. A esperança sobrevive, ainda
que a salvação seja exclusivamente individual e não haja espaço para a comunidade ou a solidariedade.
Quase quatro décadas depois, os Estados Unidos de "Sobre Meninos e Lobos",
como os de "Elefante", assim como de
"O Amor Custa Caro" [em cartaz em
SP], dos irmãos Cohen, são muito diferentes. Já não há mais nenhuma esperança, e o individualismo se transformou
em "nonsense" violento puro ("Elefante"), em cinismo ("O Amor Custa Caro")
ou então em puro ódio dos adultos e violência dos meninos ("Sobre Meninos e
Lobos"). Ou ainda, nos termos de Jacques Rancière, no mal em si, no mal "que
não tem conserto senão ao preço de um
outro mal que permanece irredutível"
(Mais! de 23/11/2003).
Em qualquer dos casos, é a violência
que predomina, não a violência dos filmes de ação com efeitos especiais, que
afinal é pequena quando comparada
com aquela que aparece nos filmes de
Van Sant e Eastwood.
Ao vermos esses filmes, compreendemos que os EUA de George W. Bush e de
seus falcões fundamentalistas não são
mero acidente. É impressionante como a
grande nação se divide e mergulha em
sua própria crise. Como ela, que era a esperança do mundo no início do século
20, e parecia ser sua concretização imediatamente após a vitória na Segunda
Guerra, se transformou em ameaça para
esse mesmo mundo. Como o país mais
poderoso se transformou também no
mais dominado por medos irracionais.
Como um ataque violento, como foi o
de 11 de setembro de 2001, afinal serviu
para que uma direita fundamentalista
manifestasse sua própria violência, em
vez de servir para que os EUA revissem
sua política no Oriente Médio e reorganizassem a luta contra o terrorismo.
Progressos
Estou convencido de que
os problemas que os Estados Unidos hoje enfrentam estão relacionados com seu
atraso no plano político-institucional. O
progresso econômico e tecnológico vem
sendo muito maior do que o político, à
medida que as instituições políticas americanas se revelavam incrivelmente rígidas, só reformáveis por meio de decisões
sim-ou-não da Corte Suprema. Mas esse
é apenas um tema para análise na discussão de um problema muito maior e muito mais complexo.
As obras de arte não apontam caminhos, muito menos sugerem soluções.
Estas terão que ser encontradas por meio
da ação política, do debate democrático.
Por meio de uma perspectiva que conserve o melhor da tradição liberal e individualista de democracia, mas seja também solidária e republicana. A América
de Griffith e de Kazan não está morta.
Críticos como Michael Moore e Noam
Chomsky mostram que a esperança está
viva e que existe uma alternativa moral e
democrática contra a violência sem limites que mata a esperança -o grande inimigo que "Elefante" e "Sobre Meninos e
Lobos" identificam.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e pesquisador associado
da Maison des Sciences de l'Homme. Foi ministro
da Fazenda (governo Sarney), da Administração
Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (governo FHC).
Texto Anterior: ET + Cetera Próximo Texto: Capa 07.12 Índice
|