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+ sociedade
O escritor americano comenta as marcas do pluralismo religioso em seu país, a
"nação mais devota do mundo"
SOMOS INFIÉIS?
por E.L. Doctorow
Ultimamente temos sido chamados de infiéis. No entanto talvez
sejamos a nação mais devota
do mundo. Tanto Tocqueville
quanto Dickens, quando estiveram aqui
dando uma olhada em nós, ficaram surpresos com a quantidade de Deus que
havia na sociedade americana.
Na verdade, o infiel não é necessariamente um descrente; ele também pode
ser um crente com o uniforme errado.
Mas, diante da variedade de práticas religiosas existentes em nosso país, incluindo a do islamismo, acredito que o termo
"infiel" como tem sido aplicado a nós
nos últimos tempos provavelmente não
se refere a uma determinada religião que
possamos adotar como nação, mas ao fato de, entre nossa população de 290 milhões, adotarmos todas elas.
Supermercado
É claro que a maioria de nossas religiões, incluindo o cristianismo, o judaísmo, o islamismo e o
budismo, chegou aqui em épocas diferentes, vinda de outras partes do mundo.
Foram vulneráveis, como costumam ser
as religiões, a tantas fraturas denominacionais a ponto de oferecer a um potencial paroquiano um virtual supermercado de opções espirituais.
Algumas de nossas religiões -o mormonismo, a ciência cristã, o antropomorfismo dos nativos americanos- foram inventadas ou reveladas aqui mesmo. E, se pensarmos, mesmo casualmente, no desfile de religionários criativos e influentes em nossas terras -dos
colonizadores Anne Hutchinson e Roger
Williams, Jonathan Edwards e Cotton
Mather, a nossos cidadãos evangélicos
Aimee Semple McPherson, Billy Sunday,
Father Divine e Billy Graham-, perceberemos imediatamente que deixamos
de fora os adventistas, os milleritas, os
shakers, os swedenborguianos e os perfeccionistas do século 19, para não falar
nos estádios cheios de noivos da Igreja
da Unificação do reverendo Moon ou
dos sectários suicidas de Jim Jones ou do
desafortunado Ramo Davidiano, em
Waco, Texas, ou dos crentes dos Portões
do Paraíso que se castraram e tiraram as
próprias vidas para embarcar no cometa
Hale-Bopp quando ele passou voando
em 1997.
Um dos debates menos brilhantes entre os teólogos é sobre a distinção entre
uma religião e um culto. Mas de modo
geral nossas religiões ou cultos religiosos
testemunham a profunda sede americana por conexão celestial. Queremos uma
libertação espiritual da sociedade que
criamos a partir do humanismo secular.
Que nosso país encharcado de Deus é,
pela ciência política, secular pode ser indicado pelo fato de que a palavra que denota o estado de ser infiel, "infidelidade",
traz a nossas mentes não uma violação
da fé no verdadeiro Deus, mas uma violação do contrato de casamento entre
simples mortais. Maridos traidores e
mulheres adúlteras podem ser considerados imorais e tratados com desprezo
ou pena, mas geralmente não são considerados infiéis. O termo, porém, pode
ser justamente aplicado a todos, incluindo os mais pios e monógamos dentre
nós, devido a um grande pecado cometido mais de 200 anos atrás, quando a religião e o Estado americanos foram separados e todo culto foi reservado à vida
privada. Foi Jefferson quem disse: "Nossos direitos civis independem de nossas
opiniões religiosas assim como de nossas
opiniões sobre física ou geometria".
E, embora seja exatamente devido a esse princípio de liberdade religiosa que
desfrutamos desse constante furor de
orações e cantos, estudos e jejuns, confissão e expiação, exaltação e pregação,
danças e banhos, tremores e convulsões,
abstenção e ordenação, surge um paradoxo dessa expressão de nossa democracia religiosa: se vocês extraíram a ética
básica da invenção religiosa e encontraram o mecanismo para instalá-la nos estatutos da ordem secular civil, como fizemos em nossa Constituição e em nossa
Carta de Direitos, mas relegaram toda
doutrina, rito e ritual, todos os símbolos
e práticas tradicionais aos recintos da vida privada, estão dizendo que não há um
caminho comprovado para a salvação,
há apenas tradições. Se vocês relegam as
antigas histórias às opções pessoais de
adoração particular, admitem que o inefável é inefável e em termos de um possível triunfalismo teológico vale-tudo.
Ofensa ao fundamentalista
Nosso pluralismo tem de ser uma profunda
ofensa ao fundamentalista, que por definição é um absolutista intolerante de
qualquer forma de crença, exceto a dele,
de qualquer história, exceto a dele. Em
nossa democracia desordenada, a fé religiosa fundamentalista se organizou com
perspicácia política para promulgar leis
que minariam exatamente os princípios
seculares humanistas que incentivaram
seu florescimento em liberdade. É claro
que raramente houve um período em
nossa história em que Deus não tenha sido invocado a marchar. Os abolicionistas condenaram a escravidão como um
pecado contra Deus. O Sul alegou autoridade bíblica para possuir escravos. A desobediência civil do movimento pelos direitos civis de Martin Luther King Jr. extraiu sua força da oração e dos exemplos
de moral cristã, enquanto a Ku Klux
Klan e outros grupos de supremacia
branca invocavam Jesus como padroeiro
de seu racismo.
Mas houve uma diferença crucial de
ênfase entre essas invocações tradicionais e as ações politicamente astutas e
bem organizadas nos últimos anos dos
líderes do movimento conhecido como
Direita Cristã, que nem recorrem tanto à
fé para justificar sua política como recorrem a um país que certifique sua fé.
Punição ao secularismo
O fundamentalismo realmente não pode fazer
nada -é absolutista e não pode se comprometer com nada, nem mesmo com a
democracia. Não é de surpreender que,
imediatamente depois do atentado ao
World Trade Center e ao Pentágono,
dois destacados fundamentalistas cristãos o teriam explicado como uma punição justificada de Deus a nosso secularismo, nosso libertarismo civil, nossas feministas, nossos cidadãos gays e lésbicas,
nossos provedores de aborto e tudo e todos que sua fé fundamentalista condena.
Honrando dessa maneira os assassinos
de quase 3.000 americanos como agentes
da justiça divina, eles estabeleceram sua
consanguinidade com o princípio da
guerra justa em nome de tudo o que é sagrado e fizeram uma declaração de fidelidade ao ideal de governo teocrático de
um texto sagrado qualquer.
Não apenas em outras terras somos
considerados uma nação de infiéis.
E.L. Doctorow é escritor norte-americano, autor
de, entre outros, "A Grande Feira" e "Billy Bathgate" (Companhia das Letras). O texto acima foi extraído de "Reporting the Universe" (Harvard University Press). Copyright: E.L. Doctorow, 2003.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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