São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003 |
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O SALVA-VIDAS KANT
1.
Meu pensamento foi marcado não por um único filósofo, mas pelo ir e vir
entre os motivos, as linguagens e os argumentos dos três filósofos alemães
decisivos. De Kant eu me apropriei do conceito de autonomia, que dirigiu o
pensamento filosófico a trilhos completamente novos. Tenho em mente não só
a filosofia moral, mas também a filosofia do direito. Em Kant me tem fascinado
justamente o elemento rousseauniano da autolegislação dos cidadãos unidos.
Juntamente com o único direito humano originário de viver sob as leis da liberdade, ou seja, de ter direitos de modo geral, a autonomia política dos cidadãos
fundamenta "o modo de governar republicano". Na filosofia alemã, Kant é o
único pensador politicamente inequívoco. Por essa razão, ele foi para minha
geração, depois de 1945, algo como um salva-vidas.
Certamente só de Hegel, sobretudo do jovem Hegel que vai até 1806, eu
aprendi que nós temos de conceber a razão em materializações históricas dolorosas. Caso contrário, permanece-se na "impotência do dever-ser". Sem uma
divisão de trabalho produtiva com as ciências sociais e do espírito, a filosofia
não pode se livrar da palidez de um normativismo magro.
Enfim, aprendi de Marx que a razão perde seu aguilhão crítico se é inchada
em espírito absoluto. A dialética não deve paralisar na glorificação neo-aristotélica da "eticidade" das relações dominantes. A razão é uma toupeira. Foucault
nunca esqueceu isso.
O pensamento radicalmente histórico dos jovens hegelianos, que mantém
aberta a história e que confere à práxis precedência sobre a teoria, nos reconduz
novamente de Hegel a Kant, nos deixando a um passo deste. De um ponto de
vista filosófico, nós permanecemos, em todos os aspectos essenciais, contemporâneos da geração dos hegelianos de esquerda. Somente dessa visão prospectiva nós podemos aprender alguma coisa também de Nietzsche, mas não da retrospectiva sobre Nietzsche que nos abre a "Carta sobre o Humanismo", de
Heidegger.
Jürgen Habermas é filósofo alemão e expoente da segunda geração da Escola de Frankfurt. É autor de "Teoria da Ação Comunicativa" e "O Discurso Filosófico da Modernidade" (ed. Martins Fontes), entre outros livros. Este texto foi publicado originalmente na revista "Nouvel Observateur". Tradução de Luiz Repa. Texto Anterior: Antonio Negri: A filosofia embrutecedora de Bush Próximo Texto: saiba + Índice |
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