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+ cultura
O professor de história da Universidade de São Paulo explica como a distinção
entre amadorismo e profissionalismo pressupõe o confronto de classes sociais
O processo civilizador do esporte - Flavio de Campos
Adriano Schwartz
especial para a Folha
Flavio de Campos é professor do departamento de
história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e um dos responsáveis pela disciplina de pós-graduação "História Sociocultural do
Futebol - Impulso Lúdico, Composição e Significações".
Autor da série didática "O Jogo da História" (ed. Moderna), ele discute na entrevista a seguir as mudanças por que
passou a relação entre os esportes e as sociedades, principalmente nos últimos 200 anos, pois, como ele afirma, "no
século 19, os esportes pressupunham o combate entre
iguais. Eram disputas formais contra antagonistas considerados à altura em termos sociais".
Quais são os principais significados sociais da prática esportiva ao longo da história?
Em primeiro lugar, devemos diferenciar jogos de esportes. Acompanho os estudiosos que identificam uma
transformação nas atividades lúdicas na passagem do
século 18 para o 19. No processo de emergência da sociedade industrial, determinadas modalidades passaram a ser regulamentadas e padronizadas. Transcorreu o que
Norbert Elias definiu como processo de
esportivização, com regras mais rígidas
que visavam a estabelecer certa igualdade de oportunidades aos concorrentes e
maior controle sobre o limite da violência e o uso da força física.
Para Elias [1897-1990], tratava-se de
um avanço no processo de civilização,
comparável à "curialização" dos guerreiros medievais.
Para Johan Huizinga [1872-1945, historiador holandês,
autor do clássico "O Outono da Idade Média"], uma
profanação, um desequilíbrio, pois o aparecimento do
esporte teria significado a perda da espontaneidade e
da liberdade do jogo. No momento do seu nascedouro,
os esportes representaram, principalmente, a afirmação de um conjunto de práticas que se organizavam em
escala mundial, mas vedado às classes subalternas por
meio da defesa do amadorismo.
Além do condicionamento dos corpos e do aperfeiçoamento
das atividades físicas, existe uma questão social vinculada
ao surgimento dos esportes? Como isso irá se resolver posteriormente?
Sem dúvida. As fronteiras entre o amadorismo e o profissionalismo eram também divisas sociais. Se tomarmos os Jogos Olímpicos na era moderna, poderemos
perceber que essa questão se arrastou desde a primeira
edição, em 1896, atravessou toda a Guerra Fria e só se
resolveu plenamente em Atlanta, em 1996. No século
19, os esportes pressupunham o combate entre iguais.
Eram disputas formais contra antagonistas considerados à altura em termos sociais. Nas primeiras edições
dos Jogos, o discurso oficial sustentava que o profissionalismo era o principal inimigo dos esportes.
No centenário dos Jogos da era moderna, significativamente, Atenas foi preterida por Atlanta, sede de poderosos patrocinadores dos Jogos, como a Coca-Cola e
a rede CNN. Quatro anos antes, em Barcelona, havia sido permitida a presença de atletas profissionais em todas as modalidades. A bandeira do amadorismo não
sobreviveu à nova ordem mundial. E o bilionário
"dream team" [de basquete dos EUA] pôde se exibir
nas quadras olímpicas.
Em que medida, historicamente, um acontecimento como
os Jogos Olímpicos tem o poder de mobilizar as pessoas ou
criar nelas percepções distintas dos fatos de sua época?
Os Jogos e os esportes criam realidades sedutoras. A rigor, apresentam tempos, espaços e valores específicos
que não coincidem, necessariamente, com a vida cotidiana. Se por um lado provocam uma suspensão temporária da rotina social, de outro se tornam janelas reveladoras das características e tensões de uma dada sociedade num determinado momento histórico. Devemos afastar o risco de análises anacrônicas e comparações descabidas. Nesse sentido, os jogos e os esportes
devem ser compreendidos nas suas articulações históricas, e não apenas pelos
seus significados intrínsecos descolados
do seu meio social.
Cada edição dos Jogos traz à tona um
conjunto de tensões coletivas. Berlim, em
1936, com o regime nazista e as perspectivas de superioridade racial colocadas em
disputa numa corrida de velocidade,
vencida por um atleta negro. Tóquio, em
1964, e sua emocionante cerimônia de
abertura, quando a pira olímpica foi acesa por um jovem sobrevivente do terror atômico de Hiroshima.
México, em 1968, quando, a dez dias do início dos Jogos, cerca de 10 mil estudantes organizaram as suas
barricadas, em sintonia com o que ocorria em outras
partes do mundo. Os fantasmas dos atentados de Munique, em 1972, rondam agora Atenas, como um pesadelo para muitos que acreditam ou pretendem propalar uma era do terror.
As percepções a respeito deste nosso tempo podem
ser distintas, mas todos ficarão atentos aos rumores de
atentados na vila olímpica, à participação da pequena
delegação da Palestina e a possíveis manifestações políticas antiglobalização.
Até que ponto é válido comparar um jogo à guerra?
Evidentemente, depende do jogo. Aliás, a designação
no singular pode dispor o problema em falso. É preciso
apresentar os jogos numa perspectiva diversificada. Os
jogos estabelecem entre si uma intrincada rede de parecenças e parentescos. Avançar sobre o território adversário, conquistar posições, inibir seus movimentos, arremessar uma bola e até golpeá-lo são lances de diversas modalidades lúdicas que lembram a guerra. Isso é
válido, também, para modalidades disputadas por um
número maior de concorrentes, como as corridas, as
competições de tiro, as provas de atletismo e natação.
Nesses casos, indivíduos assumem o papel da representação de coletividades em disputa pelo melhor desempenho. Mas deve-se considerar que a característica
de combate será acentuada de acordo com o grau das
rivalidades sociais ou nacionais dos competidores.
Às vésperas do início de mais uma Olimpíada, gostaria que o
sr. falasse brevemente sobre o impacto desse evento numa
sociedade conturbada como a brasileira, do ponto de vista
sociológico/antropológico.
Em primeiro lugar é importante destacar o fascínio e o
poder de absorção dos Jogos Olímpicos (e também da
Copa do Mundo de futebol) em milhões de homens e
mulheres espalhados pelos quatro cantos do planeta.
Nenhum outro elemento cultural se equipara à capacidade de mobilização característica desses megaeventos esportivos. A sociedade brasileira não foge à regra
nem à rede que dá sustentação e visibilidade a esses espetáculos. Dentre as muitas conturbações específicas
do Brasil, salta aos olhos esse nacionalismo de ocasião,
embalado pelas coberturas televisivas ufanistas que reforçam laços de coesão e unidade e que acabam por
transbordar das praças esportivas.
É como se os esportes oferecessem a matéria-prima
ou o combustível para expressões nacionalistas, paradoxalmente, num contexto de acelerada padronização
cultural e comportamental. A "Pátria Olímpica" -como serão saudados os atletas- e a corrente de torcedores brasileiros -que formarão uma espécie de força
psíquica propulsora- farão emergir recalques, projeções, estigmas (sobretudo com relação aos adversários)
e compensações diante das vitórias e derrotas que se
sucederão.
O esporte é uma questão importante academicamente? Se
sim, está sendo tratado de modo devido?
Diante da dimensão social que os esportes e os jogos assumiram, seja na nossa sociedade contemporânea, seja
em sociedades pré-industriais, parece evidente que se
trata de uma questão de extraordinária importância
para a pesquisa acadêmica. Uma chave interpretativa
extremamente fecunda para a análise das mais diversas
formações sociais. Particularmente, parece-me difícil
compreender a sociedade brasileira negligenciando o
papel desempenhado pelo futebol em suas mais diversas expressões ao longo dos últimos cem anos. Mas a
questão dos jogos e dos esportes é um desafio acadêmico a ser enfrentado, porque ainda há uma certa resistência, uma certa desconfiança com relação à pertinência desse tipo de pesquisa, e muito que aperfeiçoar do
ponto de vista metodológico.
Mesmo assim, é perceptível uma tendência crescente
de cursos, teses, dissertações e projetos voltados a essa
direção. Cabe aos pesquisadores ocuparem melhor o
campo dos jogos.
Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O
Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano
da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo, no prelo).
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