|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A SOCIEDADE TOTAL
UM DOS PRINCIPAIS HELENISTAS VIVOS ANALISA EM CINCO VERBETES DE QUE MODO NOÇÕES
COMO PROGRESSO, AMOR E RELIGIOSIDADE PASSARAM DA GRÉCIA ANTIGA ATÉ OS DIAS ATUAIS
por Jean-Pierre Vernant
politeísmo
Na Grécia, todos os atos do cotidiano são marcados pela religiosidade: quando as pessoas comem, quando viajam, em todas
as ocasiões da vida suas condutas carregam a marca da presença de um universo
divino ao qual devem se conformar. Mas
não existe uma esfera religiosa que deva
imperativamente moldar essas certezas.
Não existe credo. Logo, aquilo que, de
certa maneira, seria imposto pelo monoteísmo sob sua forma cristã -ou seja, um
controle dos espíritos e do conhecimento- não existia. O esforço da filosofia grega para pensar o mundo de maneira completa e complexa foi objeto de uma construção intelectual que não é de tipo religioso. Não apenas nenhum credo era imposto
de antemão como tudo era discutido: os
sofistas, Platão, Aristóteles, os estóicos não
concordavam em suas idéias.
A ebulição intelectual entre os politeístas
gregos era intensa, mas foi o monoteísmo
que difundiu a noção de humanidade e de
amor. Entre o "eros" grego e o "ágape" (o
amor) cristão existe uma mudança total.
progresso
Houve um período no qual muitas
pessoas, no Ocidente, conviveram com a idéia de que passado e
presente não tinham outro sentido senão o de preparar um futuro que traria soluções e romperia com os egoísmos
nacionais e as injustiças sociais. O que me
atraía no marxismo não era apenas o fato
de tornar compreensíveis para mim as injustiças chocantes, mas de me revelar os
mecanismos sociais, econômicos e técnicos que geraram essa situação. Assim, os
caminhos da luta eram fundamentados na
razão. Com a crença segundo a qual, por
exemplo, era possível fazer um planejamento econômico antecipado, tornava-se
possível substituir pela previsão as incertezas das relações de força e das descobertas
técnicas ou econômicas.
Assim, tornava-se possível imaginar
uma humanidade na qual o homem seria
livre; passaríamos (aqui retomo uma fórmula de Marx [1818-83]) do "reinado da
necessidade" -no qual somos conduzidos pelas coisas- para o "reinado da liberdade" -no qual é o homem quem domina essa necessidade. Eu acreditei nessa
idéia. Hoje, não acredito mais.
Hoje percebo que existe um elemento
temporal de peso capital: a imprevisibilidade. No fim das contas, a física contemporânea tampouco crê na causalidade mecânica. A imprevisibilidade também está
presente no campo da vida social ou intelectual, e eu diria que é ela quem nos salva:
é tanto mais interessante aquilo que é imprevisível. Ou seja, somos sempre surpreendidos pelo que acontece, e a explicação sempre chega a posteriori.
Compreendemos que as técnicas que desenvolvemos, as formas de energia que
descobrimos, podem ter conseqüências
que seus descobridores em nenhum momento imaginavam. Nosso futuro humano é posto em questão pelo desenvolvimento técnico. Existe o Prometeu de Marx,
que quer transformar o mundo.
Mas o Prometeu grego não é esse. O progresso é uma idéia grega na medida em
que passamos do estágio da barbárie -ou
da vida quase animal- para a vida civilizada. O mais importante, para Prometeu, é
nunca desistir.
comunidade
Os gregos inventaram a cidade, e o
paradoxo é que a grandeza desta
é, ao mesmo tempo, sua fragilidade. A cidade não é mais dirigida por um soberano único. Uma sociedade
hierárquica tomou o lugar de uma sociedade igualitária na qual todos os homens
estão a uma distância igual do centro e participam das discussões. Mas o essencial,
em uma comunidade, é o sentimento de
"philia" -a amizade- que seus membros nutrem uns pelos outros. É esse o cimento humano. Ora, se existe uma assembléia ou um debate, haverá obrigatoriamente dois discursos contraditórios que
serão decididos pelo voto. Conseqüentemente, a cidade se divide, e essa divisão
significa que a democracia traz em seu bojo, necessariamente, a possibilidade de negar seu fundamento: a amizade entre pessoas que são todas semelhantes e estão em
pé de igualdade. Em dado momento, essa
homogeneidade gera a divisão e a luta.
Os gregos nos legaram o sentimento da
comunidade. E também o fato de que o essencial na vida do homem não é o trabalho,
mas a vida política, o contato com os outros nas assembléias, as discussões nos
banquetes. Todo o interesse da vida reside
precisamente naquilo que não é utilitário.
É uma idéia muito diferente da nossa. O
trabalho não é a base do vínculo social. Para os gregos, o fato de cada artesão ser especializado -o fato de que um produza
sapatos, outro, fivelas, e, ainda outro, jarros- é a prova de que essa divisão do trabalho não pode constituir o fundamento
de uma sociedade, já que o fundamento da
sociedade é aquilo que os homens possuem de semelhante.
Logo, o que deve unir os homens é aquilo
que mostra o mito de Protágoras, conforme relatado por Platão [428-348 a.C.],
quando Protágoras [485-410 a.C.] explica o
que aconteceu no momento da criação das
espécies. Prometeu e seu irmão Epimeteu
são encarregados de dotar cada espécie
animal da forma, das qualidades e das forças que vão caracterizá-la. Eles tomam o
cuidado de fazer com que essas qualidades
se equilibrem. Se um animal ganha força e
tamanho, ele não terá rapidez. Se ele é mais
frágil, será dotado de rapidez ou da capacidade de voar, para que possa sobreviver.
Depois eles criam os homens, e, no momento de sua criação, não restam mais forças e qualidades suficientes. Logo, o homem surge desarmado.
Para que a espécie humana não desapareça em razão de sua fragilidade, o que se
faz? Dota-se cada um de saberes técnicos,
de modo a compensar por aquilo que lhe
falta. Ele é sensível ao frio: as pessoas vão
fiar e tecer a lã, produzir tecidos. Ele tem
pés frágeis: ganhará sapatos.
Assim, cada saber técnico é dado ao homem, e é ao trocar seus produtos que estes
vão poder constituir uma sociedade. Mas
as coisas não funcionam direito -porque
cada um se ocupa de seus assuntos. Os homens se digladiam. Zeus fica sabendo disso e, para salvá-los, encarrega Hermes de
remediar essa situação catastrófica. É assim que Hermes dota os homens do senso
da honra e da justiça. Nesse momento, todos poderão constituir uma cidade, não
por possuírem os saberes técnicos, mas
porque todos compartilham a mesma
idéia daquilo que é honrado e justo.
cultura
Ainda pensamos um pouco como os gregos. O que
alguém faz para tornar-se filósofo? Lê os gregos,
depois lê Descartes [1596-1650] e Espinosa [1632-77],
mas existe uma continuidade. Lemos os gregos, mas
não lemos os filósofos chineses nem os da Índia. Nos
campos estéticos, isso ainda é verdade. A pintura do Renascimento teve origem nos modelos gregos. O teatro e
a tragédia são a mesma coisa. Excetuando esse legado,
porém, nos distanciamos dos gregos. Eu diria que a
Grécia foi redescoberta. Quando eu era jovem, todos os
que não eram burros demais estudavam grego na escola. Hoje em dia acontece o contrário. Aqueles aos quais
designamos como a elite (os magistrados, advogados,
médicos...) tinham os dois pés plantados na cultura grega. Hoje, as elites zombam dela. No entanto não é por
acaso que, quando Freud [1856-1939] criou uma nova
disciplina, foi buscar Édipo e Antígona. Quando os astrônomos descobrem uma constelação, é a mesma coisa: dão a ela um nome grego. Quando alguém acaba de
criar um novo perfume, me pergunta se posso lhe redigir uma lista de personagens gregos que ficariam bem
sobre o rótulo. Quer dizer então que, se dão aos frascos
de perfume os nomes de "Héracles", "Hércules" ou
"Perseu", isso mexe com o quê? Com nada de preciso,
mas com um sentimento ambíguo, de algo ao mesmo
tempo familiar e distante. É verdade que, para alguém
que não é "religioso" -ou seja, alguém que pensa que o
mundo é o que é e que, se existe algo além do mundo,
esse algo está dentro deste mundo aqui, que é neste
mundo mesmo que existe essa experiência que ultrapassa o cotidiano (é o meu caso)- a Grécia é importante. É muito útil. Pois a Grécia é uma civilização essencialmente construída sobre a base do mundo como ele
é, sobre a aceitação e a transmutação desse mundo em
valores de beleza, inteligibilidade, de afeto, de amor, de
riso... E, por conseguinte -já que é preciso que as coisas tenham sentido, algo de que não é fácil lhes dotar-,
existe a arte. Não é uma sociedade para a qual a vida só
faz sentido em relação com outra vida, com o além. De
maneira nenhuma. É a vida, com seu lado trágico. Façamos o que fizermos, a morte é radicalmente ininteligível. Foi o que compreenderam os gregos quando criaram a cabeça de Medusa, que transforma quem a olha
em pedra -ou seja, o contrário do que é humano. Eles
explicam que essa Górgona, que não pode ser descrita,
pintada ou expressa por palavras, é o incompreensível,
o absurdo total. Isso dito, eles a expõem por toda parte e
não param de falar dela. É o paradoxo da Górgona: fazer
ver aquilo que não pode ser visto, dizer o que não pode
ser dito, figurar o que não é figurável. É uma das partes
de nossa condição humana.
resistência
Para os gregos, não existe questão que não possa ser
submetida ao exame intelectual. Essa é nossa herança.
Existe um livro do poeta Yves Bonnefoy [poeta francês, nascido em 1923] intitulado "L'Arrière-Monde" [O
Mundo de Trás] que mostra que, em uma paisagem,
existe algo atrás dela que faz parte dela, mas não está ali.
A mesma coisa acontece na vida. Os gregos o diziam.
Aquiles disse isso a Agamênon: "Você é um covarde
porque não está disposto a entregar sua alma em cada
momento". Retomo o ideal de Aquiles. Existem coisas e
valores que contam no mundo, mas que são valores
mundanos. Isso significa que os temos, que podemos
perdê-los, negociá-los, reconquistá-los. São os valores
que circulam. A única coisa que não podemos nem trocar nem recuperar é nossa própria vida. É isso que
Aquiles diz a Agamênon. E, como ela é o que existe de
mais precioso, existe nela algo que transcende. Não podemos aviltá-la pela conciliação. Existem momentos
em que não existe escolha, em que não existe conciliação possível, não existem meias medidas.
Este texto foi publicado na "Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: + trecho Próximo Texto: + quem é Jean-Pierre Vernant Índice
|