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Ponto de fuga
Belas trapaças
Jorge Coli
especial para a Folha
Na mostra sobre Botticelli e Filippino Lippi, que ocorre
em Florença, no palácio Strozzi, e que registra, enquanto
escrevo, um imponente sucesso de público, encontra-se
exposto, na minha opinião, um falso -e talvez dois." A
mostra em questão foi comentada nesta coluna, domingo
passado. É uma esplêndida manifestação de arte. Mas teria
incluído dois falsos, segundo Giorgio Bonsanti, especialista indiscutível, professor em instituições internacionais de
primeiro plano, diretor do Museu do convento de São
Marcos, em Florença. Comandou, entre outras, a restauração dos afrescos de Fra Angelico naquele mosteiro, e a do
"Tondo Doni", de Michelangelo, na Galeria degli Uffizzi.
A frase citada abre o ensaio "Como Se Reconhece um
Falso", no catálogo, sério e rigoroso, de uma outra exposição, apresentada em Siena: "Falsi d'Autore", falsos de autor. Reúne obras que vão do século 13 ao 15 e que possuem
o ponto comum de terem sido feitas, todas, do final do século 19 a meados do século 20. Muitas, compradas por importantes museus e colecionadores, enganaram peritos renomados.
A exposição se organiza à volta de uma personalidade
maior, Icilio Federico Joni, falsário de Siena, e agrega obras
de seus contemporâneos, também fantásticos trapaceiros.
Em 1927, o insigne historiador da arte Pope-Hennessy
descobria e caía de joelhos diante de um relevo em mármore firmado por Donatello, que um antiquário de Londres adquirira por milhões. É, de fato, deslumbrante. Meses depois, o verdadeiro autor, Alceo Dossena, denunciava
o engano, porque ele próprio recebera uma quantia ínfima
no negócio.
Trama - Há cem anos, a Itália, e Siena sobretudo, alimentava grande parte do mercado antiquário: as artes da Idade
Média e do primeiro Renascimento estavam então na moda. Restauradores completavam generosamente obras
fragmentárias. Executavam cópias de quadros sob encomenda, criavam estátuas à maneira antiga para ornar fachadas e jardins.
Que muitas fossem apresentadas como originais autênticos era um passo, irresistível pelo lucro que proporcionavam. As redes cúmplices dos marchands, hábeis em iludir
amadores e peritos, ampliavam-se. No mundo turvo do
mercado artístico, a fé desses atribuidores nem sempre é
sincera. O mais célebre de todos, Bernard Berenson, comprou, em 1899, velhas e venerandas pinturas. Descobriu
depois que eram recentes, obra do falsário Joni. Isso não
impediu que Berenson as leiloasse, em Londres, como legítimas.
Marca - Giorgio Bonsanti ensina, no catálogo da mostra
"Falsi d'Autore", que os anos ajudam a desvendar falcatruas. "Sabemos hoje que o falsário é filho do tempo, que o
seu patrimônio iconográfico se formou portanto a partir
da reserva de imagens de que dispunha (...) A "contemporaneidade" de um falso dura 20 ou 30 anos, depois é ultrapassada." A leitura de uma obra é feita sempre com os
olhos de agora, e o falsário não escapa disso; ou seja, fornece o objeto artístico de um passado tal como nós o vemos e
sentimos hoje.
Bonsanti explicita: "Percebemos (...) um perfil de moça
que gostaria de se situar entre Botticelli e Ghirlandaio, mas
que, na realidade, lembra Deanna Durbin ou Shirley Temple". Um Vermeer feito por Van Megeren em 1937 era autêntico. Hoje, parece um Vermeer de 1937, levemente art
déco. Existem porém outros falsos, mais duros de roer.
Sem dúvida, muitos são ignorados e ainda enganam nos
principais museus do mundo. Que um ou dois pseudo-Botticellis se insinuem numa grande mostra internacional
não é de espantar: certos falsários são autênticos gênios.
Retrato - Mary Logan Berenson, esposa do célebre perito,
conta, em seu diário, datado de Siena, 4/10/1899: "Descobrimos nosso falsário [Joni], mas foi coisa bastante simples, porque "ele" é um bando buliçoso de jovens, primos e
amigos, que fazem esses trabalhos em conjunto, um desenha, outro passa a tinta, outro acrescenta sujeira, outro faz
as molduras, e meninos com um cachorrão montam guarda às pinturas, expostas ao sol para "envelhecerem". (...)
Não escondem nada".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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