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+ cultura
Os 50 anos dos grupos Ruptura e Noigandres propiciam uma reavaliação do seu papel nas artes e no pensamento brasileiros
A máquina concreta repensada
Leda Tenório da Motta
especial para a Folha
De todas as instâncias curadoras
do pequeno e belo projeto Arte Concreta Paulista, instalado até
hoje no Centro Universitário
Maria Antônia, em SP, neste momento
em que se arredondam os 50 anos do
grupo Noigandres, nos chegam duas
afirmações principais, tão acertadas
quanto insistentes.
Primeiro, os Noigandres são responsáveis por uma transformação radical nos
parâmetros de realização da poesia entre
nós, só comparável ao salto modernista.
É o que lemos logo na entrada da sala dedicada aos artistas arregimentados sob
essa palavra-montagem sempre intrigante, que quereria dizer "vencer o tédio": "Noigandres" -pinçada, de propósito, num dos trovadores da língua
que Dante pensou ser a matriz de todas
as outras, o provençal. Língua remota e
obscura que -alheios a qualquer lema
nacionalista e invocando o tempo histórico longo- os homenageados elegem
como sua. E em que Augusto de Campos
-tradutor dos provençais- recita diretamente, aliás, no precioso CD que vem
encartado no catálogo consagrado a esse
núcleo da exposição.
Segundo: tão certo quanto isso é que,
durante o meio século que se estende
desde o lançamento da plataforma que
foi também buscar em Oswald de Andrade a palavra "concretista", se arma
um muro de silêncio em torno dos fundadores. "Perdemos a visão de quanto o
concretismo é a base de sustentação das
poéticas brasileiras", nota, nesse sentido,
Lorenzo Mammì, diretor do Centro Maria Antonia e coordenador do projeto.
Ele pondera, no site da mostra, que o
movimento só tem sido valorizado nas
artes brasileiras em detrimento do núcleo originário, nascido em São Paulo
-esse centro processador sem inconsciente colonial, como já se disse genialmente- dos contatos entre os visuais
Noigandres e os artistas plásticos do grupo Ruptura, liderados por Waldemar
Cordeiro. O que significaria que absorvemos mais Hélio Oiticica e Lygia Clark,
por exemplo, do que tudo o que os prepara e possibilita, como se o que vem antes não fosse mais que um pano de fundo ou o negativo de um futuro positivo.
O que ficou de fora
Por acertadas que sejam essas verificações -além do mais, corajosas, já que se chocam com a conhecida tese de que os concretos só fazem se queixar, enquanto vão ocupando todos os espaços...-, vale a pena assinalar, até para entabular um diálogo com os organizadores, o que ficou de fora e pede para ser dito.
Aproveite-se o momento para salientar: não é só a oportunidade de se pôr em
dia com a "exquise crise" das artes na alta modernidade -nem só uma teoria e
uma prática da tradução- que a cultura brasileira deve à intervenção dos Noigandres. Que já nem fazem mais poesia
concreta -veja-se o último Haroldo de
Campos de "A Máquina do Mundo Repensada" (ed. Ateliê), de regresso à rima
dantesca e ao Carlos Drummond de Andrade neoclassicizante de "Claro Enigma" (ed. Record).
Mais que isso, o que devemos a essa
corrente civilizadora é uma outra virada
-quem sabe se não mais notável- no
âmbito daquilo que Alexandre Eulálio
chamou de "a musa retardatária", referindo-se à disciplina aqui nascida no século 19, nas páginas dos jornais, em meio
à retórica retumbante dos bacharéis; e
que Roberto Ventura viu funcionar, naqueles primórdios, como uma declinação do gênero "desafio", feito para conter o enorme ego dos então oficiantes.
Estamos falando da crítica.
Segunda revolução
Cinquenta anos depois, o que também temos que agradecer ao grupo que nos pôs e continua pondo em dia com o que se passa no mundo em matéria de experiência estética é ter ainda, numa segunda revolução, imposto um deslocamento ao padrão
crítico aqui instalado, tão logo a disciplina se moderniza, na passagem dos rodapés para a universidade, com a criação
das faculdades de letras e, nos anos 60,
com a introdução da teoria literária e das
pós-graduações; ou ainda ter inflexionado, século adentro, o próprio comentário crítico universitário, sustentando
contra a tese magistral do país atrasado e
suas poucas letras a hipótese igualmente
magistral de que os infantes americanos
nada ficam devendo em matéria de cultura, justamente por pegarem o bonde
da história andando.
Eis com o que nos brinda: de um lado,
com um estimulante confronto de matrizes de pensamento -e não de egos-
tão mais bem-vindas quanto parece certo que a literatura pode e deve ter mais
que uma função, e o país, que um "magister"; de outro, com esse atestado de
maioridade final da área que é o opúsculo haroldiano do final dos 80 -ele também bastante cercado de silêncio-, "O
Sequestro do Barroco na Formação da
Literatura Brasileira - O Caso Gregório
de Mattos" (Fundação Casa de Jorge
Amado). Convite ao debate de rara elegância e compostura -ao contrário do
que pensam os que não o leram-, que
nos leva, em definitivo, para o campo das
tensões metodológicas e -até porque
não há réplica malcriada a nenhuma inquirição destemperada- dá o golpe de
misericórdia no modelo dos desafios.
Leda Tenório da Motta é professora no programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade de São Paulo e autora de, entre outros, "A Crítica Literária Brasileira no Último Meio Século" (ed. Imago).
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