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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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O CRÍTICO E ESCRITOR CRIA UM DIÁRIO FICCIONAL INSPIRADO NOS ÚLTIMOS DIAS DE VIDA DO AUTOR DE "MEMÓRIAS DO CÁRCERE"

TODAS AS COISAS À SUA VEZ [Abecedário]

Arquivo/"Última Hora"
O escritor Graciliano Ramos com a neta em foto de março de 1953


Transfixão de Silviano Santiago

Não há escuridão que alimente. Não há calor (humano?) que aqueça. Não há lágrima que esmoreça. Há a doença. Mortal. Haver (verbo impessoal e inativo, segundo a gramática).

Deduzo, logo não concluo.

Tão doente quanto flores mal cheirosas.

Na hora em que podia prestar socorro à vida, a beleza feminina não tem argumentos. Já serviu -não serve mais- de recurso retórico para expressar o desejo carnal. Não vira bóia, que se atira ao náufrago. Hoje é foice imantada pelo diabo e afiada pelo espectro da morte. Deixo-me seduzir pelo fio da sua navalha, como quem solta um grito. De redenção.

A mulher se esconde na sombra. Por que evita a luz? Por que não se desnuda? Por que nunca se dá a conhecer? Por que é segredo? Por que é verdade? A mulher é Maia. Sua arma mortífera -o pudor. Machado de Assis desvendou o mistério -o segredo da mulher. Só que não passou a fórmula a nós, homens. Matou (simbolicamente) a esposa, o amante e o filho. Todos viram testemunha de acusação. Como todo pai d'égua, Machado age em causa própria. Não busca a mulher, quer o harém. Atenção! Homem de harém nada tem a ver com homem de bordel. Para este a nudez da mulher é premissa do gozo. Nesse caso, a nudez feminina tem preço. Custa muito barato. Baratíssimo. Homem de harém é descendente de Don Juan. O de Molière, é claro. "... tudo pelo amor da humanidade".

E falam de monogamia. Coisa de padre e puto enrustido. S abe, aqueles ambulantes que saem empurrando a carrocinha pela cidade, a afiar facas. Gostava do assovio estridente, que anunciava a sua presença, das chispas de fogo fabricadas pelo metal contra metal, dos olhos infantis que admiravam o relampejar, das cozinheiras e arrumadeiras que, da janela, piscavam para o portuga, padroeiro dos degoladores de galinha. O afiador de facas, o pipoqueiro, o sorveteiro, o baleeiro, o leiteiro... Profissões populares que se vão com a rapidez que trouxe o automóvel e traz o avião, esses aparelhos assassinos. Século assassino. Fui reler o poema de Carlos: "Que século, meu Deus! Diziam os ratos/ E começavam a roer o edifício".

O pavio curto da dinamite revolucionária (...) faltou um palito de fósforo à minha geração. Somos delicados os marxistas ocidentais.

Onde se lê: um palito de fósforo, leia-se: tutano. Onde se lê: delicados, leia-se: covardes.

Seringaita é a seringa que injeta parlapatices na minha imaginação.

A cachaça incita as palavras do dicionário, que se tornam velocistas de maratona. Na folha de papel em branco, dão passadas rápidas, medidas e coesas. Uma frase, mais uma, e já são três. Economizam o entusiasmo para a arrancada final. Alcançada a vitória do parágrafo ou do capítulo, desce a sensação de repouso.
Já a morfina embaralha os passos da escrita. Entontece-os, literalmente. Entorpece a imaginação. Parece que entro num museu de bricabraque, onde a cada objeto e ao conjunto deles falta sentido. Busco a palavra e não comparece. Aparece a correspondente em uma das duas línguas estrangeiras que domino. Busco o final da frase e já não me ocorrem as palavras iniciais.
Morfina não é para artista-criador. É para artista-intérprete. Aquele que já conhece de cor e salteado a partitura. Decididamente, não nasci para ser concertista no piano das letras.
Tenho um importante livro para terminar -minhas memórias na cadeia. Deixo-o incompleto. Tenho um outro livro para terminar -de viagens. Tenho certeza de que o estou abandonando neste capítulo 34, a que ora ponho o ponto final. Dois livros incompletos e póstumos -seria irônico, se não fosse também grotesco. E o cigarro? Continuo a comer o pão que o diabo amassou.

Cada coisa à sua vez. Não aguento mais a implicância. Todas as coisas à sua vez.

As palavras chegam à beira do precipício e saltam desesperadas. Recolho os cacos. Se ao menos eu tivesse a coragem de roubar-lhes algumas vertigens. Não tenho. Nas minhas mãos a sintaxe virou cola-tudo.

Não sei se distribuí, se contribuí, se restituí. Nem sei se estou resistindo.

Daqui a 50 anos, minha prosa será execrada pela falta de humor. Restam-me dois consolos. Canarinho canta porque não sabe rir. Palhaço ri porque não sabe falar.

Dou-me de presente todas as idéias. Só não me dou de presente a idéia de infinito. Não me acostumaram (não me acostumei) a justificar qualquer hierarquia, a pensar a desigualdade. A relação do homem com o infinito não se passa no campo do saber. O infinito é um desejo que se nutre da própria fome. Ele cresce, mais se sacia. Eu, um metafísico? De jeito nenhum. Encantam-me os paradoxos. Ou melhor: sou vítima dos paradoxos. Se levanto o punhal para assassiná-los, zombam de mim. Quanto mais zombam, mais os admiro pela inconsistência sedutora. Gosto de corrigir. Ossos do ofício de revisor no jornal.

Dizem-me um escritor difícil. Analfabetos!

O silêncio faz barulho. A música ambiente ainda não terminou. O saxofonista é o tuberculoso que se vê no espelho? É o vizinho do apartamento ao lado que desafina no violino? Ou é o cantor das multidões -Francisco Alves-, que me puxa o pé lá do cemitério onde acaba de ser enterrado?

Mais aguda é a dor, mais agudo é o sentido da vida. Certo? Falso. Mais aguda é a dor, mais inevitável é o precipício. Tibum!

Corrijo-me. Aiiiii! tão intensa a dor. Oooooh! tão intenso o alívio.

Não sei por que busco o dicionário "Littré" na estante. Copio do nosso "Aurélio" a definição do vocábulo que buscava. "Intermitência: Interrupção momentânea, intervalo." Insatisfeito com o resultado, volto ao "Littré". "Intermittent, -e. Qui discontinue et reprend par intervalles. Fièvre intermittente, qui cesse et qui reprend à des intervalles réglés. Pouls intermittent, pouls dont les battements cessent par des intervalles inégaux" (1). Fiz uma boa compra na passagem por Paris.

Camuflo o tatibitate durante a conversa, como menino que comete má ação. À noite, escrevo pouco. Meço milímetros. Remendo menos. Estou me exercitando no avaro e lucrativo estilo milimétrico. E, no entanto, tudo é iminente. Reclama a pressa. E adianta correr? Uma língua de consoantes grunhe, espantando o vernáculo. Medo de perder as vogais.

Mentira: medo de perder a palavra.

O tempo presente é um terrível hiato. As macieiras cobriam-se de flores. Lá no horizonte vicejará a terra desconhecida e civilizada.

A solidariedade não é suficiente. De que servem irmãos e irmãs na dor? Busco alguém que seja superior ao comum dos mortais. Só ele poderá-. Procurá-lo-ei onde estiver. Aquém e além-mar.

Resignado ao ônibus e ao bonde, será que viajei alguma vez pelo prazer de viajar? A viagem (a Buenos Aires) está sendo locomoção do corpo pelos meandros do sofrimento, que aumenta e quer explodir. Minha pele é a porta que demarca o prazo do suportável. Meu reino por uma janela!

Meu reino por uma seringa hipodérmica! Assinado, o Caveirinha.

Para ser suicida, é preciso primeiro ter sido otimista. Não é o meu caso. O movimento do meu pensamento sempre foi ascendente. Sonda o pior em busca do melhor, para poder elevar o subjugado. Tenho horror ao agreste das profundezas*. Sinto-me melhor na pele de astrônomo do que de mergulhador. Ah, esse ranço de cristianismo, que me achata no equador e dilata nos pólos.
* Quis construir um mundo ficcional desprovido de profundidade. À merda com a psicologia e a psicanálise!

Posso me substituir por qualquer um que me visita. Ninguém que me visita pode me substituir. Obsessão de réptil, em especial daquele chamado camaleão.

A glória. A varejo e no atacado. Aceitar o elogio dos amigos de cambulhada com o dos inimigos? À beira da cama, não. Pelas ondas hertzianas, punge o coração. À beira da cova? (...) se o futuro nem a Deus pertence, muito menos pertencerá a mim.

Minha filha não entende. Este robe de chambre cor de vinho, que me recobre, é a lembrança que guardo da vida saudável. Meu robe, minha memória. Deixo-me ser envolvido por ele como uma serpente que não quer mudar de casca. E mudou, contra a sua vontade. O robe vinho esconde das visitas essa nova casca amarelada que se cola à pele da serpente alagoana.

Sei que minha filha guardará o robe, como guarda tudo o que me pertence. Depois da minha morte, imaginará que estarei dentro do robe, como o meu corpo está no íntimo de todos os meus escritos? que estarei dependurado no cabide do armário? Será que algum dia vai querer cheirá-lo? Minha memória, sua posse.

Ouço outra voz -adivinhem de quem?: "Para que deixar o robe aí dependurado no armário? Está lavado e passado, novinho em folha, pode ir para uma instituição de caridade". Meu patrimônio, seu legado.

Teriam a coragem de me enterrar vestido nesse robe cor de vinho?

Uma frase incompleta me vem ao espírito com insistência. Ninguém pode saber o que é a sensibilidade da pele até-

Quatro horas e vinte e três minutos da madrugada. Que espécie de heroísmo é esse?

Viro para o lençol e lhe digo: "Tu quoque, Brute...". Para a colcha, para o travesseiro e para tudo o mais que me toca e repito: "Tu quoque, Brute...". Por onde andará o tribuno Marco Antônio? Não me faltarão oradores à beira do túmulo.

Afagar é uma coisa. Conhecer é outra bem diferente.

Será que não desconfiam que eu desconfio? Falta-lhes o desconfiômetro que me sobra.

Tanto lá como cá. Os médicos recobrem a mentira com a capa da piedade. São todos impostores e católicos convictos. Vou mandar fumigar o formigueiro desses jesuítas com formicida Nietzsche. Palavras do anticristo de plantão.

Tantos anos levei para me descristianizar, e agora vivo da caridade que o bom sentimento alheio esbanja. Devo continuar mal-agradecido?

Todo Rimbaud tem a irmã ao pé do leito no hospital. Tem seu Paul Claudel de plantão na hora da morte. O defunto não controla o amplificador da solidariedade.

Aviso aos redatores de obituário. Se tivesse de escrever um resumo de toda a minha vida, teria vergonha.

Aceito sugestões. Uma lauda no máximo. Em eunuco e moribundo os olhos compensam as perdas.

Leio em Karl Marx: "Ontem penhorei um casaco que remontava a meus dias de Liverpool, a fim de comprar papel para escrever". Em 27 de fevereiro de 1850, em pleno inverno londrino, escreve a Engels: "Há uma semana cheguei ao agradável ponto no qual não posso sair por causa dos casacos que tive que penhorar". Sem o casaco de inverno não podia ir ao Museu Britânico, onde fazia as leituras indispensáveis para a obra-prima que estava escrevendo.

Estou sendo simplório? Estou (confesso). Por que não me fazem coro? Neste quatro por seis, chamado sala de visitas, estamos sendo simplórios. Como pensa -se é que pensa -um ditador deposto? Como age -se é que age- um presidente cassado? Como pensa e age um corpo possuído pela morte? Tenho horror dos sentimentos que me alucinam. Posso comunicá-los. (Em troca recebo palavras sentimentais. Saio no prejuízo.) Não posso compartilhá-los. (Mais aguda é a presença da solidão. O dividendo da doença fatal.) Sem portas. Sem janelas. Vou me recolher ao quarto de dormir. Lá estarei literalmente sozinho. De que valem essas anotações?

A autenticidade. Ela me espreita. Lá do fundo do desfiladeiro, onde já estão depositados os cacos das palavras. Diálogo canhestro entre a autenticidade e as palavras. Evito-o.

O que é, o que é? Somos dois (bem diferentes), que formam um (os dois bem juntinhos), que acabam como três (um terceiro que se desgarra e tem vida própria). Resposta 1: a paternidade. Estou no filho, ele estará em mim? Resposta 2: a imortalidade. Deixo os meus livros. A quem?

Poema
Não me interessam mais as coisas que não me interessam.

Na sala de visitas. Antes de enunciar a frase, ele calça a boca com luva. Desce a cortina dos olhos, cruza os dedos. Depois de proferir a frase, descruza-os.
Não conversa comigo, está rezando.
Sem Deus, será que continuaria a me visitar e a dizer o que diz? Não ama o semelhante, ama a Deus sobre todas as coisas.
Na certa também calça os olhos com luva antes de ler as safadezas do Velho Testamento.


Não me interessam mais as coisas que não me interessam


Minha rosa-dos-ventos. Cansaço ao norte. Preguiça ao sul. Esforço a leste. Desinteresse a oeste.

Anticigarra. Amealho forças para mais um verão carioca, como formigas amealham provisões para o inverno. Formigas são más conselheiras: Eh bien, chantez maintenant!

O corpo -diz o Bhagavad-Gita-, "chaga de nove aberturas". A cada buraco, maior a humilhação.

Peço a palavra. Declaro solenemente que moribundo caga e mija. Por favor, retirem-se da sala de visitas. Ou eu me retiro.

Aconteceu comigo o que nunca deveria ter acontecido em vida. Virei um velho caduco.

Sei que é dezembro, não sei é se tenho cara de presépio. Hoje vieram visitar-me os três reis magos da literatura brasileira. Pela tristeza no olhar, suavidade na voz e delicadeza na escolha das palavras, exercitavam um ato de contrição diante da manjedoura. À saída, dei-lhes a bênção.

Paródia dos pampas argentinos. Mi casa no es tu casa.

Tenho as mãos de assassino e o corpo de ditador. Tenho os pés de fanático e a alma de torturador. Sai da frente! Amanheci hoje puro ódio.

Alguém -que seja Deus ou não- tenha piedade de mim! Não consigo ser mais forte do que a minha incredulidade.

Descoberta. Ele ataca até a imaginação. O câncer na palavra.

Ansiedade, teu nome é morte.

Na cama. Cinco membros inúteis. Os dois superiores, os dois inferiores. Também o do centro, chamado viril. Este gostava de rodopiar como pião. Gostava.

Releio minhas anotações. Recuso usar mais uma palavra que termine em -ade. Principalmente aquela.

Entro como saí. Envelopado. Tudo é uma questão de bolsa: a d'água e a de madeira. Bem-vinda, ó morte!

"Feito pó, feito pólen, feito fibra, Feito pedra, feito o que é morto e vibra."
Vinícius de Moraes.

Nota
1.Intermitente. Que descontinua e volta a intervalos. Febre wintermitente. Que pára e que volta a intervalos regulares. Pulso intermitente. Pulso cujas batidas param em intervalos desiguais.


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