São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002 |
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MARX CONTRA MARX
Maurício Santana Dias da Redação
Desde que publicou o primeiro tomo de "Marx
- Lógica e Política", em 1983, o professor emérito da USP Ruy Fausto, 67, vem empreendendo uma das críticas mais sistemáticas aos fundamentos filosóficos do marxismo. Conhecedor da obra de Marx como poucos, Fausto está lançando no final deste mês o terceiro tomo de sua obra monumental,
que será completada por um quarto volume. Embora
reconheça que deixou de ser marxista "há pelo menos
20 anos", Fausto, que há 30 vive na França, sentiu-se
agora impelido pelas circunstâncias mais recentes a
abrir um parêntese em sua reflexão teórica para analisar, na melhor tradição do marxismo crítico, os aspectos mais problemáticos da atualidade política. Numa
longa introdução ao seu livro, são passados em revista o
governo Fernando Henrique Cardoso, os "descaminhos" da intelligentsia uspiana, as estratégias políticas
da esquerda brasileira -sobretudo do PT-, a emergência de um neo-anarquismo, a ascensão da extrema
direita na Europa, o recrudescimento do capitalismo
após os ataques de 11 de setembro. Os alvos são muitos
-e a verdade é que não sobra muita coisa de pé.
Se Lula e o PT não abandonaram certas ilusões no plano da política internacional, o que é lamentável, houve certamente progresso: eles tomaram alguma distância em relação aos antigos modelos (a propósito da pretensa incompetência do PT, seria preciso lembrar a quantidade de grandes intelectuais brasileiros que apóiam esse partido e as possibilidades que ele tem, por isso, de mobilizar grandes energias intelectuais em caso de vitória. Quanto à ameaça de caos na hipótese de uma vitória de Lula, esse tipo de conversa já existia no tempo do "front populaire" francês e é uma faca de dois gumes). Na realidade o problema das alianças é por um lado ético e por outro lado político. O que quero dizer com isso? Alianças são válidas e possíveis, mas um partido de esquerda democrático que se preze não faz alianças: 1) com gente claramente à direita (com o centro se pode fazer, e não se diga que é difícil distinguir centro e direita, trata-se de estabelecer um critério geral); 2) com gente notoriamente corrupta. A primeira exigência é política, a segunda é ética, mas uma ética que se exige da política, que deve estar incluída na política de um partido de esquerda democrático. A confusão é grande a respeito disto. Se não for corrigido, o caminho que o PT está seguindo conduzirá à sua morte. Votarei em Lula, porque acho que os erros ainda são reversíveis; e espero a sua vitória. Mas o destino da esquerda brasileira não se identifica com o destino do PT e ainda menos com o destino de Lula. Se o PT abandonar a política de alianças oportunistas, escolher um bom candidato (ou candidata) à Vice-Presidência, a derrota não será uma catástrofe. O PT e, com ele, a esquerda continuarão o seu curso ascendente. Mas se ele insistir nessas alianças? Se, nessas condições, ele perder as eleições (e isso pode acontecer, pois nem eleitoralmente é certo que esses pactos valham a pena), acontecerá o que rezava o velho saber churchilliano: venderam a honra para conseguir a vitória, pois tiveram a desonra e a derrota... E, se o PT ganhar nessas condições, ele vai governar apoiado nos "pastores" do PL, nas mais belas flores do PMDB e em quem mais...? Pergunto-me em que um tal governo seria melhor do que os outros? E se o PT insistir nesse caminho? Nesse caso, não tenho dúvida (e essa é a atitude de muita gente), deixarei de votar nesse partido. Não para adotar uma posição de repúdio à política, como a que pregam certos neo-anarquistas milenaristas, de que também me ocupo no meu livro, os quais se alimentam precisamente do desencanto crescente com a política do PT. Tampouco iria aderir a algum grupúsculo revolucionário (gostaria que os membros desses grupos estudassem um pouquinho mais a história desastrosa do bolchevismo). Votaria em branco, mas só até que se formasse um novo partido, reunindo as forças socialistas e democráticas não contaminadas pelo oportunismo e pela corrupção. Essa não seria a primeira vez que um partido de esquerda teria apodrecido. Em seu livro o sr. acusa o governo de FHC e o seu ex-colega José Arthur Giannotti de praticarem e pregarem o "amoralismo". Gostaria que comentasse esse ponto. Dedico um certo número de páginas do meu livro à crítica de Giannotti. Há um certo parentesco, que assinalo, entre a ética de Giannotti e a ética política de FHC, mas me ocupo da primeira também independentemente, como farei aqui. O que não significa que os problemas que discuto não tenham também implicações políticas, e a fortiori no Brasil de hoje. Tudo isso se articula de algum modo, embora não de modo imediato. Minha crítica a Giannotti é ao mesmo tempo teórica, ética e política. Li "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras), mas não acho que tenha grande importância. Bem mais importantes, porque muito esclarecedores, são os artigos que ele publicou na Folha (refiro-me aos artigos sobre as "zonas de amoralidade" etc.), que analiso em detalhe no meu livro. Tento mostrar: 1) que a suposta leitura vulgar ou ingênua desses textos é a que se impõe: Giannotti procede a uma verdadeira defesa de um certo amoralismo -eu diria do amoralismo- em ética e em política; 2) que esse amoralismo tem afinidade pelo menos com parte dos seus textos teóricos e converge perfeitamente com as suas práticas na universidade, principalmente no plano da competição universitária. Aqui aparecem questões prévias de que trato em detalhes no meu livro. A recusa preliminar em discutir certo tipo de problemas microssociais sob pretexto de que são "individuais" ou "pessoais" não tem nenhuma justificação. Há um individual "pessoal" e há um individual "universal", sem o que a "Crítica da Razão Prática" de Kant seria um livro de fofocas (mesmo se tratadas abstratamente). Contra os preconceitos correntes que professam em uníssono marxistas, nietzchianos, psicanalistas a-críticos, filósofos universitários etc., acho que discutir esse gênero de questões é da maior importância. Nessas discussões, há, é claro, um quociente "individual-pessoal", mas ele não é essencial. Aliás Giannotti sempre usou esse tipo de argumento. Ele, que se pretende crítico do psicologismo, sempre psicologizou sem mais -em relação a seus atos, diz: "É meu jeito", "Eu sou assim"...- o que é de ordem transcendental, o que concerne ao bem e ao mal (ou é, digamos, de ordem "psicoética"). De que estou falando? Do fato de que Giannotti, com alguns dos seus amigos, sempre praticou e pratica um estilo hipercompetitivo e até "brutal" (ele mesmo empregou e assumiu esse termo) dentro da universidade. Na realidade, Giannotti pratica dentro da universidade um tipo de competição que é do estilo da competição comercial ou capitalista. Discuto isso mais em detalhe no meu livro, diria aqui apenas que esse estilo é a morte da universidade. Longe de fecundar o trabalho teórico, a competição sem limites (não falo da emulação ou mesmo da competição com regras, e não se diga que a diferença é relativa: ela é enorme) desserve -sem falar do resto- o progresso intelectual. O argumento de que eles estão preocupados com a "excelência" é pura ideologia; preocupa-lhes isso sim o próprio destino e o dos grupos que representam. Giannotti utiliza o mito popular, totalmente falso, do grande professor "de maus bofes", mas sentinela da ciência e intransigente com a verdade... Isso é ilusório. Se as relações entre virtude e ciência são complicadas, o caso geral é o da convergência, não o da divergência -e, quando ocorre esta última, em geral a ausência de virtude, digamos assim, se opera longe das práticas intelectuais. Com o que não quero dizer que o nível de Giannotti seja "ruim" -na realidade, ele é "mediano"- nem dizer que nada do que escreveu presta. Tudo somado, e apesar das aparências, o segredo de Giannotti está nas suas insuficiências como teórico. As práticas hipercompetitivas lhe são, sem dúvida, fonte de grande prazer, mas os motivos profundos não são apenas "libidinais", são também funcionais; Giannotti precisa delas. As vantagens que poderiam resultar para a coletividade dos raros casos em que o que ele escreveu -refiro-me ao que tem real interesse- não se encontra "melhor", em outro lugar, são amplamente compensadas pelo clima infernal que assim se induz e pelos efeitos negativos desse clima sobre os progressos da teoria. Poderia dar muitos exemplos. Vendo o resultado, uma ética de um amoralismo consternante, uma lógica eclética com pouco brilho e em geral uma produção muito marcada pelo conhecimento-por-ouvir-dizer e sem outra orientação maior que não a da luta contra os "inimigos" (isto é, a do primado da concorrência, que passa a ser substantiva), tenho às vezes a impressão de que Giannotti é uma espécie de Gonçalves de Magalhães (poeta considerado o fundador do romantismo brasileiro) da filosofia brasileira: filósofo semi-oficial, muito apoiado pela mídia, mas sem real talento. Como examina a recente ascensão da extrema direita na Europa? Que consequências ela pode ter? O assunto exigiria uma resposta longa. Na introdução ao meu livro, escrita em fins de 2001, refiro-me ao problema. Há um componente histórico, a presença de um "fundo" de extrema direita, que agora emerge. Antes de estudar as causas dessa emergência, valeria a pena analisar os casos negativos, isto é, o dos países onde ela não emerge, e estudar por que não emerge. Até aqui -a situação poderia mudar- escapam dessa onda de extrema direita principalmente a Espanha, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Acho que as razões são as seguintes: a Espanha e a Alemanha passaram por traumas violentíssimos (derrota e destruição, guerra civil), por causa de governos de extrema direita. Isso de certo modo os imuniza, salvo erro. Quanto à Inglaterra, a vitória sobre o nazismo está inscrita como "página gloriosa" na sua história. Claro que isso tudo vem de mais longe -e é em parte efeito. Passando agora aos casos positivos -limito-me à França-, há um outro dado histórico, porém mais recente. A dissolução do império colonial terminou com a Guerra da Argélia (compare-se com o final relativamente pacífico do Império Britânico, pelo menos no que concerne às relações colônia/metrópole). E a guerra da Argélia significou xenofobia antiárabe, sobretudo no sul. No plano imediato, temos a situação precária dos setores marginalizados pela globalização (setores que a esquerda governamental "esqueceu" completamente, mas a esquerda não-oficial esquece outras coisas), o desenvolvimento de um começo de violência urbana (ligada a esses fenômenos mas também ao enfraquecimento de estruturas familiares e a outros fatores), o déficit democrático e social da construção européia e a questão da imigração. Os países da Europa terão de aceitar a idéia de uma nação pluriétnica e pluri-religiosa, para além dos limites atuais. Ora, o que se fez até aqui em matéria de integração
de imigrantes e filhos de imigrantes é muito pouco. Uma medida importante seria a concessão de direito de voto aos estrangeiros não-comunitários (os outros já o têm) nas eleições municipais e européias, medida que, parcial ou totalmente, está no programa da maioria dos partidos de esquerda e extrema esquerda. A mobilização, principalmente da juventude de esquerda, foi muito impressionante e de certo modo salvou -por ora- a República. Mas resta o fato de que uns 5 milhões de franceses votaram e votam num candidato neofascista, racista e demagogo. Principalmente depois de ter lido a excelente biografia de Hitler por Yan Kershaw, um livro que é ao mesmo tempo uma importante história do nazismo, estou convencido de que, se ocorrer uma crise econômica aguda -a tal crise que, segundo alguns, poderia conduzir ao socialismo-, a França correrá um risco real de acordar, um dia, sob um governo fascista. Analisando o novo terrorismo, o sr. diz que ele combina o que há de mais regressivo no mundo periférico com o que há de mais moderno no mundo capitalista. Como vê as possíveis consequências dessa "aliança"? O fenômeno do terrorismo tem que ser estudado com muito cuidado, como um fato que não é novo na história. Creio que é preciso pensar o seu caráter regressivo. Ele é certamente regressivo em relação ao capitalismo democrático. O terrorismo fundamentalista atual aparece na interseção de dois elementos: por um lado, se liga ao desmantelamento e à relativa banalização das modernas técnicas de extermínio; por outro, à medida que retoma tradições religiosas antigas, tem algo de arcaico. Mas ele também tem uma modernidade política para além das técnicas de extermínio. Definir essa modernidade não é fácil. Digamos o seguinte: dadas as condições da economia mundial, as características em geral autocráticas dos movimentos de libertação nacional e tendo em vista os erros e crimes dos governos ocidentais -penso no caso Mossadegh no Irã, derrubado por um complô anglo-americano, ou na expedição anti-Nasser no Egito-, os movimentos nacionais e antiimperialistas, uma vez no poder, desembocaram num impasse econômico e político. Das condições desse impasse é que nasceram -e fundamentalmente se desenvolveram, a partir de realidades já existentes- de um lado os novos fundamentalismos e, de outro, as autocracias e terrorismos laicos. Do ponto de vista do socialismo democrático, tudo isso representa uma aberração. Há uma certa analogia entre o que aconteceu no Primeiro Mundo e na sua periferia imediata. Assim como o socialismo democrático desemboca em poder de Estado na Rússia e no Leste Europeu, os movimentos nacionais e antiimperialistas se perdem nas formas autocráticas ou nos fundamentalismos religiosos. Assim como as burocracias foram e ainda são regressivas, são também regressivos os terrorismos pseudolibertários de toda a sorte e os fundamentalismos político-religiosos. Bem entendido, é preciso evidentemente incluir entre estes últimos o dos colonos israelenses que ocupam ilegalmente o território palestino. Texto Anterior: + cultura: A sociedade dos exilados Próximo Texto: + Dicionário Marx Índice |
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