São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002 |
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DEMOCRACIA POR SUBTRAÇÃO
Marcos Nobre especial para a Folha
István Mészáros é um pensador radical e obstinado.
Radical porque não vê outra solução para a humanidade que não a abolição do capital. Obstinado porque não se deixa desviar de sua radicalidade. Em
tempos mornos, de política em fogo brando, Mészáros
surge como uma figura estranha, próxima do incompreensível. Profundo conhecedor da tradição marxista e de suas fontes filosóficas, sente-se à vontade em atacar
todas as pequenas e grandes idéias em voga. Faz de Mikhail Gorbachov um duplo de Margaret Thatcher, criticando-os ambos.
Um dos pressupostos de seu livro é a distinção entre "capital" e "capitalismo", de que, o "capital" precede o "capitalismo" em milênios. Mas isso não leva, entretanto, a uma tal amplificação do conceito de capital que se corre o risco de desistoricizá-lo? A produção e alocação de trabalho excedente é um requisito fundamental de qualquer desenvolvimento histórico viável, de uma futura sociedade socialista, inclusive. A "única" questão é: quem está no comando do processo de produção e alocação. Isso é o que está irremediavelmente errado sob todas as formas concebíveis de dominação do capital, seja quando pensamos na conversão de trabalho excedente em mais-valia sob o capitalismo, seja a sua extração efetivada politicamente, sob os sistemas de tipo soviético. O problema é, de fato, que, sob o capital, um corpo separado controla a extração e alocação de trabalho excedente, e não o que Marx chamou de "livre associação de produtores". No que diz respeito à questão da desistoricização, não há risco de isso acontecer em minha abordagem. Pelo contrário, sempre sublinho que a fase histórica do capitalismo se restringe aos últimos três ou quatro séculos, cinco quando muito. Falar em "capitalismo antigo", como o fazem Weber e outros, é o que eu chamaria de desistoricização. A presença de produção esporádica de mercadorias estritamente limitada em extensão está muito longe de ser suficiente para transformar a sociedade da Grécia Antiga em uma sociedade capitalista. O que decide a questão em última instância é o surgimento e crescente dominação do capital industrial. De fato, o capital remonta a milhares de anos na história. Mas apenas em suas formas mais primitivas, como variedades embrionárias de capital mercantil e monetário. Quando sublinho essa conexão, faço-o com o objetivo de destacar a dimensão histórica do fenômeno. E isso em duas direções. Primeiro, em relação ao passado: tornando claro que o capital industrial não se lança na cena histórica pronto e armado, como Palas Atena da cabeça de Zeus. Pois ele só é compreensível se as condições de sua gênese histórica são levadas em consideração em sua inteireza, em conjunção com a dialética da continuidade e da descontinuidade. Segundo, na direção do futuro: pela insistência em nosso inevitável desafio histórico de enfrentar as imensas dificuldades impostas pela tarefa de superar/erradicar o capital, como modo sociometabólico de controle herdado. O capital não pode ser "derrubado/abolido", como se imagina frequentemente, nem se pode abolir o Estado e o trabalho enquanto tais. Só o capitalismo pode ser derrubado/abolido; e mesmo isso apenas em bases estritamente temporárias. Pois a ordem pós-capitalista permanece exposta ao perigo da restauração se o necessário trabalho de erradicação não for perseguido desde o início, em todas as dimensões da produção e reprodução, desde funções metabólicas imediatamente materiais até aspectos culturais mais mediados envolvidos nos intercâmbios individuais e societais. Sobre isso, a lição da triste história da implosão das sociedades pós-capitalistas é exemplar. Para o senhor, a superação do capital (e não apenas do capitalismo) exige a abolição da divisão social do trabalho que lhe corresponde. É sabido que o senhor rejeita qualquer tentativa de retorno a uma organização social de tipo pré-capitalista e, igualmente, as posições daqueles que afirmam que a alta complexidade da sociedade atual representaria um obstáculo objetivo à consecução do objetivo que o senhor persegue em seu trabalho teórico e prático. Nesse sentido, que papel o senhor atribui à ciência e à técnica no sistema de comando do capital? De fato, a superação/erradicação do capital é impensável sem a superação da divisão hierárquica do trabalho social. Vemos aqui, mais uma vez, que esta não pode ser simplesmente abolida nem mesmo por medidas políticas imbuídas das mais sinceras intenções enquanto não encontrarmos alternativas viáveis para as práticas sociometabólicas herdadas, agora reificadas nas bem conhecidas formas de dominação e subordinação. Entretanto esse fato pode ser tomado seja como um grande desafio para uma mudança radical, de longo alcance, a ser tenazmente sustentada, ou como desculpa conveniente para a perpetuação das hierarquias sociais herdadas. Aqueles que encontram em uma suposta "complexidade insuperável" uma justificação apriorística para a manutenção de sua posição privilegiada na sociedade pertencem à segunda categoria, qualquer que seja sua coloração política. Na verdade, a complexidade não cai do céu, como se se impusesse a nós como um gigantesco e irremovível bloco de pedra até o fim dos tempos. A complexidade tem de ser produzida e mantida em existência e pode também ser alterada significativamente. Muito da assim chamada "complexidade" no sistema capitalista (ou seja, a falta de transparência de suas inter-relações produtivas e distributivas) deve-se à necessidade de ocultar não apenas dos capitalistas que competem entre si mas, muito mais importante, do seu antagonista social: o trabalho, o que não deveria ser ocultado de maneira alguma em uma ordem reprodutiva organizada racionalmente. Também esse fato torna bastante claro que a questão real é a do controle, e não a de uma complexidade "neutra" ou sem sua devida qualificação social. É evidente que um processo de trabalho organizado de tal maneira que suas funções de controle não precisem ser transferidas para um corpo separado, mais ainda, que não precisem, ocultadas de maneira antagonística dos próprios produtores, é inerentemente menos complexo do que sua alternativa adversária capitalista, que é a da complexidade insuperável. "Dominar a complexidade" é, portanto, o mesmo que retomar o controle do processo de reprodução social. Esconder-se por trás de um conceito de complexidade "socialmente neutro" em nome de "nossa ciência e tecnologia" é obviamente fugir ao problema. Habermas e outros falam da "cientificação da tecnologia" e da necessidade de aceitar esse processo no interesse do avanço produtivo. A verdade é que testemunhamos a tecnologização da ciência a serviço do lucro, levada a uma extrema destrutividade, em forte contraste com a noção desejável de avanço produtivo positivo. Correspondentemente, ciência e tecnologia poderiam ser muito diferentes, desde que libertas de roupagem fetichista atual. Igualmente, uma diferença qualitativa surge ao se abrir a ciência para o envolvimento criativo da grande maioria da humanidade, em oposição à sua exclusão categórica de hoje, realizada por meio de uma divisão social do trabalho imposta hierarquicamente. Para o senhor, o capitalismo é hoje "capitalismo de Estado", uma forma de capitalismo que tenta conciliar uma extração econômica e política de trabalho excedente. O senhor insiste em que tal "solução" é insustentável no longo prazo e aponta para uma crise muito mais séria que a crise do capitalismo -uma crise estrutural do próprio capital. Isso não pode soar como a enésima declaração da morte do capital feita nos últimos 150 anos? É inegável hoje o grande e ativo envolvimento do Estado no funcionamento do processo de reprodução, apesar de todas as fantasias neoliberais de "fazer retroceder as fronteiras do Estado". De fato, o sistema do capital não sobreviveria uma semana, talvez nem mesmo um dia, se o Estado realmente se retirasse da função de prover não apenas as necessárias garantias políticas mas também os fundos econômicos necessários, que hoje alcançam magnitudes astronômicas. Para ficar em um único exemplo, pense nas medidas tomadas pelo governo dos Estados Unidos logo após o 11 de setembro de 2001, que atingiram desde empresas aéreas e de seguro até as ações e despesas pantagruélicas no campo militar. O apetite por tais injeções está se tornando cada vez maior, mas tais injeções não podem oferecer uma solução duradoura. Pois nem mesmo o mais poderoso Estado pode dispor de um caixa inesgotável e da supremacia política e militar absoluta que seriam necessárias para isso. Como já mencionado, com relação à grande tarefa histórica da superação do capital como um modo de controle sociometabólico que tudo engloba, temos de enfrentar um processo, em curso, de erradicação e restruturação, paralelo à transformação bem-sucedida das funções reprodutivas do sistema em alternativas com sentido e humanamente realizáveis. Deixemos que falem em morte do capital aqueles que ainda acreditam em bruxaria. Para nós, a necessária erradicação do capital no curso da transformação histórica não pode ter nenhum sentido sem o seu equivalente positivo da implantação de elementos constitutivos de um sistema viável. A humanidade não pode viver em um vácuo. A morte do capital é uma possibilidade tangível apenas em um sentido. E que está muito longe de ser um sentido positivo. Ele diz respeito à extrema destrutividade do capital no presente estágio do desenvolvimento histórico, que pode potencialmente arrastar a humanidade consigo para o túmulo que está cavando diligentemente, não apenas no plano ecológico mas também em termos econômicos e militares. Em suas transformações ao longo do século 20, o capitalismo também se caracterizou pelo surgimento de novas instituições e mecanismos políticos desconhecidos de Marx, como a democracia de massa, por exemplo. Na sua visão, esses desenvolvimentos exigem mudanças na teoria tal como formulada por Marx? O senhor concorda com autores como Lênin, para os quais a participação nos processos eleitorais é meramente uma manobra tática? Essa é uma questão muito importante, que afeta diretamente as perspectivas e estratégias de todos os movimentos radicais. Para compreendê-las devidamente, seria necessário analisar as condições sob as quais as instituições da democracia de massa vieram a ser garantidas pelo capital, juntamente com sua infeliz história, que inclui não apenas as mais ferozes reviravoltas abertamente ditatoriais mas também formas mais sutis de "subtração" (ou eliminação, na prática), nas democracias liberais, das concessões antes garantidas, até o ponto de efetivamente privar de direitos o movimento operário. E, no entanto, não podemos considerar a participação no processo eleitoral uma questão de manobra tática. Não há dúvida de que o sistema parlamentar se encontra em uma profunda crise histórica, que se manifesta claramente também no modo pelo qual uma vasta proporção do eleitorado, em muitos países, não se dá o trabalho de colocar um pedaço de papel na urna. Um eleitorado extremamente desencantado com o processo eleitoral, que, em nome de escolher entre alternativas (digamos, entre Bush e Gore ou entre Blair e seu oponente conservador), não lhe oferece nenhuma alternativa real. Subjaz a isso a crise de legitimidade do Estado, resultante da margem cada vez mais estreita dos imperativos e determinações expansionistas do capital. Isso não quer dizer, entretanto, que a partir de agora a participação na determinação da natureza do corpo legislativo seja um problema sem importância. Ao contrário, a luta se dá em torno da necessidade de renovação radical do próprio sistema parlamentar, com base na compreensão crítica de suas reais funções históricas originais e das razões pelas quais essa instituição foi transformada em um anacronismo histórico. O que, portanto, está na ordem do dia é a extensão radical das funções políticas decisórias na direção de uma democracia substantiva, por meio de uma cada vez maior ativação de movimentos de massa, em oposição a uma equivocada retirada do processo político. Os movimentos sociais que emergem agora, de Seattle a Porto Alegre, da França à greve geral italiana, apontam na direção certa. Como o senhor vê o Brasil nessas suas análises e quais as suas expectativas na vinda a nosso país? Meu vivo interesse pelo que acontece no Brasil remonta aos últimos anos da década de 1960. Primeiramente, sob a forma da leitura de todo o material a que tinha acesso sobre o golpe militar. Em 1971, como professor visitante na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Autônoma do México, tive a oportunidade de me encontrar com intelectuais brasileiros críticos e de aprender em primeira mão muita coisa com eles. Alguns anos depois, como diretor-fundador do Programa de Pensamento Político e Social da Universidade de York, em Toronto (Canadá), tive a feliz oportunidade de estender em muito minhas relações com intelectuais brasileiros, graças ao contato com um bom número de estudantes de pós-graduação muito talentosos e engajados. Um dos mais destacados e dedicados dentre eles era Herbert de Souza [o Betinho", que morreu prematuramente de forma trágica. Certamente, minha ligação com o Brasil é nutrida por sólidas amizades e por discussões intelectuais estimulantes. Mas não apenas isso. Também nutro grandes esperanças pelo futuro desenvolvimento do país e por seu significado para o resto da humanidade. Pois seu potencial para transformações positivas e de longo alcance é enorme. E o é também no sentido de que, uma vez enraizadas em um país como o Brasil, com as implicações que têm para o restante de nós, essas transformações não poderão ser facilmente aniquiladas nem mesmo pelas forças hostis mais poderosas. Marcos Nobre é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas e autor de "A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno" (ed. Iluminuras). Texto Anterior: + Dicionário Marx Próximo Texto: Saiba quem foi Georg Lukács Índice |
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