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PONTO DE FUGA
Sexo, sangue e violência
Jorge Coli
especial para a Folha
"Mais alto, mais alto!", teria gritado Richard Strauss para a orquestra, regendo um ensaio de "Elektra". "Mais
alto! Eu consigo ainda ouvir os cantores!" Essa piadinha
é apócrifa; ela vai ao contrário de todos os matizes e
transparências que a música de Strauss comporta. Reitera o injusto lugar-comum de que suas obras são "barulhentas". Strauss comentou, comparando-se à pletórica orquestra de Wagner: "Em "Salomé" e "Elektra", o
diálogo foi de fato libertado da inundação que lhe impõe a orquestra sinfônica".
Ao contrário disso, a "Salomé" representada há pouco, em São Paulo, soou bastante ruidosa. A Orquestra
Sinfônica Municipal melhorou muito, está evidente,
desde que Ira Levin assumiu sua direção; qualidade técnica, porém, não resulta, necessariamente, em qualidade musical. O tratamento cênico, decerto com boas intenções, foi incapaz, no entanto, de dar qualquer sentido à ação e aos personagens. Muito desenxabida, a dança dos véus não correspondeu à beleza da protagonista,
Morenike Fadayomi.
Foram os cantores que salvaram o espetáculo: vibrante Jokanaan de Donnie Ray Albert, estupenda Herodíades de Céline Imbert. Wolfgang Schmidt cantou a parte
de Herodes: a penúria de tenores wagnerianos faz com
que ele venha assumindo papéis como os de Tristão,
Tannhäuser e Siegfried, mesmo em Bayreuth, mas os limites de sua voz correspondem melhor aos do Tetrarca.
Sobretudo Fadayomi, com uma beleza de timbre muito
rara, homogênea dos graves aos agudos e admirável no
controle vocal, na projeção e na musicalidade, encarnou uma Salomé embriagada pela crueldade erótica.
Art nègre - Os tempos da "Salomé", de Strauss, isto é, os
últimos decênios do século 19 e os primeiros do seguinte, fartos de tradições clássicas, buscaram novos apetites nas barbáries exóticas. O Ocidente, então, encontrava forças criadoras em mundos "primitivos". Abriam-se museus de etnologia, onde estetas e artistas descobriam que os testemunhos da cultura material podiam
ser, de fato, obras de formidável força artística. Objetos
vindos da África alimentaram diretamente a inspiração
do cubismo, do expressionismo.
É bem explicado no catálogo da fabulosa mostra "Arte da África - Obras-Primas do Museu Etnológico de
Berlim", no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, que
arte é uma noção própria ao nosso universo, sem correspondência precisa no mundo das culturas africanas.
Mas os olhos ocidentais não conseguem enxergar esses
objetos de outro jeito. Os comentários do catálogo, por
sinal, não escapam disso, empregando noções como
naturalismo, abstração, cubismo. A mostra, admiravelmente concebida em seu modo de expor e de iluminar,
contribui para exaltar a beleza expressiva dos objetos
espantosos. Do Rio, ela deverá ir para Brasília e São
Paulo, mas será dividida em metades, por falta de espaço nos CCBBs dessas duas cidades. Portanto, quem puder, corra ao Rio para vê-la na sua integridade: ela vale a
viagem.
Pop - As obras de Keith Haring reproduzidas em livros,
ou seja, em pequena escala, perdem o essencial, que é a
exaltação ampla de signos simples, esquemáticos. Sobretudo nas telas maiores, as figuras, traçadas por um
contorno espesso, cúmplices de situações fortemente
sexuadas e violentas, projetam uma espécie de épica
irônica e contemporânea. As polaróides de Warhol, ao
contrário, têm de ser mantidas em suas dimensões reduzidas. Embora retratem rostos muito célebres, concentram, nas superfícies brilhantes, na simplificação
restrita de cores, um mistério estranho. Captam uma
intensidade meditativa, para além da imagem. Warhol
dizia: "Olhe para a superfície de minhas pinturas e filmes e eu aí estou. Não há nada atrás disso". É que a superfície de Warhol era muito profunda.
Acabou - Frases de Andy Warhol: "A idéia que eu tenho
de uma boa foto é aquela que está em foco e é de uma
pessoa famosa". "A Polaróide acaba com as rugas de todo mundo, como se simplificasse o rosto..." As mostras
de Haring e das polaróides de Warhol foram apresentadas no CCBB de São Paulo e de Brasília até o final do
mês de outubro.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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