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Ponto de Fuga
As quatro faces de Emma: Chabrol
Claude Chabrol ironiza a burguesia francesa, e isso já o põe em sintonia com o romance de Flaubert; mas há mais: seus heróis projetam no mundo os próprios temores e desejos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Muitos críticos ressaltaram o quão foi fiel a
adaptação cinematográfica que Claude Chabrol fez
do romance "Madame Bovary",
escrito por Gustave Flaubert.
Fidelidade, de alguns pontos
de vista, pode não ser um bom
predicado em arte. Um filme é
um filme, um livro é um livro.
As obras têm qualidades específicas, que brotam delas mesmas. Resta o fato de que existem muitas afinidades entre o
cineasta e o romance.
Chabrol passou sua adolescência numa aldeiazinha da
Creuse, Departamento francês
que, como a Normandia de
Emma Bovary, é um fim de
mundo. Conheceu na pele o tédio dos vilarejos morosos. Veio
de uma classe média modesta,
como Charles Bovary; seu pai
era farmacêutico, um Monsieur Homais local.
Chabrol, observador, ironiza
a burguesia francesa, sobretudo a das cidadezinhas. Isso já o
põe em sintonia com o romance de Flaubert. Há mais. Seus
heróis projetam no mundo os
próprios temores e desejos; o
crime (ou o suicídio) ocorre
quando atravessam a fronteira
entre o imaginário e o real.
Mergulhados na percepção
deformada das aparências, persistem em suas ilusões e, por isso mesmo, tomam, sem que se
perceba, a direção do trágico.
Esse descompasso entre o
mundo e sua representação
tem muito em comum com
"Madame Bovary": no cotidiano, a normalidade aparente dos
personagens termina em loucura criminosa ou suicida.
Infiltrar
As afinidades entre Chabrol e
o Flaubert de "Madame Bovary" são grandes. O cineasta
escolheu o tom da crônica, da
descrição de costumes, bem
presente no romance.
Talvez tenha derivado algumas cenas dos dois filmes que o
precederam sobre o mesmo tema, o de Renoir e o de Minelli,
como numa homenagem: a maneira com que Isabelle Huppert, sua Bovary, bebe num copo; os criados que quebram as
janelas no baile, por exemplo.
São situações que se encontram no romance, mas que foram sublinhadas antes dele pelos dois cineastas.
Chabrol as insere numa clara
vontade de descrever os comportamentos coletivos.
Ocorre que esse tecido humano permite uma obsessão
própria ao cineasta. Ele cria
constantemente seres que se ligam a outros por vasos comunicantes invisíveis, pouco manifestos, mas muito sentidos e fatais: nem o crime ou a imoralidade conseguem destruí-los.
São laços que instauram uma
compreensão e uma empatia
para além dos erros, das faltas
tremendas.
Madame Bovary, no entanto,
não encontra esse parceiro à
sua altura, capaz de vincular-se
a ela, entendendo, silenciosamente, seu amor e seus atos.
São afetos sem retorno, que
existem "em seco", por assim
dizer, numa sociedade que não
os comporta.
Coda
Nem Renoir, nem Minelli,
nem Chabrol, ao filmarem a
mesma "Madame Bovary", levaram a trama muito adiante
depois que a heroína morre.
No romance, as páginas que
sucedem seu suicídio são de infinita tristeza. O sofrimento de
Charles, a lembrança de Emma
que, como um fantasma, "corrompia-o do além-túmulo" e
"se desfazia em podridão"
quando ele buscava abraçá-la
em seus sonhos, não tentou os
cineastas.
Fábula
A defesa que conseguiu inocentar Flaubert no processo
movido contra ele mostrou
que, ao descrever imoralismos,
o autor fizera um livro moral.
Há uma certa verdade nisso.
No final, a filhinha do casal
Bovary, sem dinheiro, termina
como operária numa fiação. É a
sentença final da fábula: punição suprema aos olhos de uma
classe média que põe a felicidade na ascensão social.
jorgecoli@uol.com.br
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