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A FAMÍLIA EM TRAPOS
Dos personagens de Homero, Dante e
Faulkner até Sherlock Holmes, relações entre
pais e filhos, irmãos e irmãs definem parte
significativa da história da literatura
Juan José Saer
É
bom lembrar que Sherlock Holmes
tinha um irmão mais velho, Mycroft
Holmes, alto e discreto funcionário
do Departamento de Assuntos Estrangeiros, que o detetive se via obrigado a
consultar nos casos mais difíceis, porque
era mais inteligente do que ele, a verdadeira mente dedutiva da família. Quanto ao
doutor Watson, que, ao voltar do Afeganistão, bateu por acaso no número 221B da
Baker Street porque alguém lhe dissera
que um tal Holmes estava procurando alguém para dividir o aluguel, depois de
compartilhar a vida com seu admirado
amigo por algum tempo, casou-se e foi viver com a mulher em um subúrbio de Londres, e então perdeu de vista o grande detetive durante muitos anos.
Esses detalhes confirmam que nem mesmo os mitos de papel, unidimensionais e
concebidos segundo o mais estrito funcionalismo, que os obriga a repetir indefinidamente a mesma série de ações que o leitor espera deles, nem mesmo eles podem
escapar do "princípio de realidade" que
significa pertencer a uma família. A família
é problemática até para quem não a tem: o
monstro remendado pelo Dr. Frankenstein, Cinderela e Jean Genet (que em alguns textos se apresenta como uma espécie de mistura dos outros dois) revelam até
que ponto a falta de uma verdadeira família pode alimentar uma consciência infeliz.
Na literatura, de ficção ou não, o lugar da
família é sempre significativo, e até se poderia conceber uma tipologia para os textos de ficção a partir do modo como neles
aparece o tópico familiar, que em muitos
autores é onipresente e, em outros, vago e
até ausente, o que não deixa de ser intrigante. Os personagens de Borges, por
exemplo, raramente têm família; e o Borges poeta, embora às vezes evoque o pai,
parece ter somente antepassados.
Nas poucas ocasiões em que as relações
familiares aparecem em seus contos ("Emma Zunz" e "A Intrusa", entre outros),
quase sempre é para resolver algum conflito por meio da violência: Emma se faz violentar e mata um homem para vingar o
suicídio de seu pai, enquanto em "A Intrusa", dois irmãos apaixonados pela mesma
mulher decidem assassiná-la para preservar seus laços familiares.
O caso de Hemingway é semelhante ao
de Borges: os temas familiares são vagos e
esporádicos em seus textos, e o único parente que às vezes se distingue neles é, também, como em Borges, o pai. Em Faulkner,
ao contrário, os personagens familiares
são onipresentes e representam uma etapa
decisiva desse gênero surrado que a crítica
pôs em voga há mais de meio século, denominando-o "decadência de uma família".
Fundada por Émile Zola, que também
concebeu a "literatura experimental", inspirado nas teorias de Claude Bernard, a saga familiar povoou sem trégua as bibliotecas do mundo ao longo de várias décadas:
os Rougon-Macquart, os Thibault, os Malavoglia, os Forsythe, os Buddenbrook, etc.
e, no Caribe, já com um certo atraso, os
Buendía. Para diagnosticar a decadência,
Zola baseou suas histórias familiares em
dados biológicos e sociais, tendo em vista a
teoria da herança e da influência do meio.
Freud descobriu que as crianças, aos dois
ou três anos, quando começam a perceber
que seus pais não são perfeitos, inventam
pais ideais (um rei e uma rainha, por
exemplo) para suplantá-los, imaginando
que os que fingem ser seus pais não passam de um par de malvados que as compraram de algum cigano ou simplesmente
as roubaram. Freud chamou essa curiosa
fantasia infantil de "romance familiar".
A partir desse conceito, Marthe Robert
elaborou mais tarde a teoria de que toda a
ficção seria uma espécie de romance familiar, um jeito de abolir o princípio de realidade para construir outra mais gratificante. Pode-se detectar um vislumbre desse
mecanismo na "Divina Comédia": na vida
adversa de Dante, exilado de Florença até a
morte, seu livro foi um modo de reconstruir o universo segundo leis estabelecidas
por ele mesmo, distribuindo castigos e recompensas a partir de suas idéias e de suas
paixões. Adotou um pai espiritual, Virgílio, que o guiou pelo Inferno e pelo Purgatório, e uma mãe ou amante mística, Beatriz, que o levou pela mão para percorrer o
Paraíso, em cujo exato centro instalou seu
tataravô, Cacciaguida, que lhe contou a
história de sua família identificando-a com
a de Florença e predisse seu futuro, anunciando que, para além das vicissitudes que
o esperavam -pobreza, escárnio, exílio
(na realidade, quando escrevia esse fragmento, muitas já o tinham atingido fazia
tempo)-, acabaria prevalecendo sobre
elas e sobre seus inimigos.
Essência tenebrosa
As que poderíamos chamar de "famílias canibais" são freqüentíssimas na literatura. Os acertos de
contas que nelas se perpetuam denotam,
em sua sanha desmedida, mais do que
qualquer outra situação dramática, a essência tenebrosa da espécie humana.
Essas disputas truculentas entre pais e filhos, entre irmãos, entre ramos de um
mesmo tronco familiar, projetam em escala monumental as pulsões que palpitam
em cada um de nós, por baixo dos nossos
instintos mais ou menos domesticados. Os
Lear, os Hamlet e seus parentes, os Karamazóv, os Sutpen de "Absalão, Absalão"
ou o pai que carrega o filho moribundo,
como uma cruz, enquanto o repreende por
todos seus crimes no conto "Não Ouves
Latir os Cães?", de Juan Rulfo, são bons
exemplos do desmesurado "grand guignol" que uma família pode representar.
Mas às vezes os conflitos podem ser mais
sutis, embora não menos tortuosos: Ulrich
e sua irmã Agata, em "O Homem sem
Qualidades", de Robert Musil, iniciam um
incesto carnal e místico no próprio dia em
que assistem ao velório do pai; no delicadíssimo "Primeiro Amor", de Turguêniev,
o pai e seu filho adolescente se apaixonam
pela mesma moça e, em "A Metamorfose",
de Kafka, é quase menos embaraçoso para
o herói ver-se transformado em um inseto
do que lidar com as iniciativas de sua família, o que dá ao texto uma comicidade surda e opressiva.
Alguns leitores já devem ter notado a ausência dos gregos no que foi dito até agora:
acontece que, assim como em relação a
quase tudo, o tema da família entre os gregos merece um parágrafo à parte. Desde a
rainha Medéia, a estrangeira, que por despeito amoroso mata os filhos para se vingar do marido, até os atridas, rancorosos e
sangrentos, de cujas mulheres Pavese dizia
que tratavam seus homens como cavalos e
para os quais todo litígio familiar se resolvia com um brutal homicídio, passando
pelo parricídio de Édipo, pelos filhos que
teve com a própria mãe, Etéocles e Polinice,
que se mataram entre eles, e por sua filha
Antígona, que foi enterrada viva por querer
dar-lhes sepultura, os personagens primitivos e torvos da tragédia mostram em claro-escuro as águas pantanosas em que chafurda o pretenso "valor-refúgio" do conformismo atual.
Porque o mito e a tragédia não são esquemas abstratos nem letra morta, e sim palavras vivas que falam eternamente de cada
um de nós: o crime abominável de Medéia
reaparece com bastante freqüência nas páginas policiais, e, quanto às famílias reinantes, vale a pena citar esta frase de Plutarco
em sua "Vida de Demétrio" (III, 1): "Quase
todas as dinastias têm muitos príncipes
que mataram os filhos, a mãe ou a mulher;
quanto ao fratricídio, era considerado, assim como os postulados dos geômetras,
uma regra usualmente admitida, necessária para a segurança dos reis".
Ambigüidade grega
Já em relação a
Ulisses, um comentarista medieval declarou que, embora tenha ficado mais que o
devido na ilha de Circe, "amava a pátria, a
mulher, o filho, o pai e os amigos". Como se
sabe, sua mulher, Penélope, foi assediada
por 129 pretendentes que, considerando-a
viúva, se instalaram em sua casa e exigiram
que escolhesse um deles para se casar de
novo. Mas conseguiu adiar a decisão valendo-se de um ardil, até o regresso do marido, que, disfarçado de mendigo, pôde estudar secretamente a situação e comprovar a
fidelidade da mulher. Com a ajuda do filho,
Telêmaco, massacrou os pretendentes e recuperou sua família e seus bens.
Mas a saudável ambigüidade grega raras
vezes se contenta com a mensagem edificante. Várias tradições sustentam que Penélope foi infiel, antes e depois da volta de
Ulisses. A mais sugestiva é a que afirma
que, durante sua ausência, Penélope se deitou com os 129 pretendentes, e que dessa
união populosa nasceu o deus Pan -"Tudo". Essa versão parece identificar Penélope com a Deusa Branca, a Grande Mãe, figura central nos cultos pré-históricos, de
cujo ventre fecundo saiu à luz do dia, inacabada e sangrenta, a família humana.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor
de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
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