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Deus e o diabo na terra do sol
por George Steiner
Existe na literatura moderna um gênero bizarro:
romances, contos e até poemas nos quais Wittgenstein figura, ou ligeiramente disfarçado ou
como ele próprio. Ao todo, porém, a presença de
pensadores abstrusos na ficção ainda é incomum. No
entanto não teríamos as obras-primas de Thomas
Mann sem ela.
Em "A Montanha Mágica", Georg Lukács inspira os
personagens Naphta e Settembrini, uma contradição
que envolve não apenas sua própria sensibilidade complicada, mas também seu compromisso com uma interpretação dialética da vida. O diabo em "Doutor Fausto" foi reconhecido imediatamente como encarnação
de Theodor Adorno. Tanto o romancista quanto o personagem tinham prazer nessa identificação.
Mann e Adorno se conheceram em 1942 ou 1943 na
Califórnia, na casa de Max Horkheimer, membro sênior do que viria a ser a Escola de Frankfurt de teoria social e crítica filosófica. Os três eram refugiados mais ou
menos privilegiados da Alemanha nazista que mantinham relações altamente ambivalentes com o país que
os recebera. Não muito longe deles viviam Brecht e
Schoenberg. No verão de 1943, Mann começou a trabalhar sobre "Doutor Fausto", o romance que formularia
sua leitura da catástrofe alemã e também afirmaria um
momento culminante em seu processo de modelar-se
em Goethe, que durou sua vida toda.
Mann se sentira em casa com a música desde o início,
conforme se evidencia em "Os Buddenbrooks". Mais
especificamente, a obra e o legado de Wagner eram
uma obsessão para ele. O eros de "Tristão", a apoteose
do incesto em "O Anel dos Nibelungos", a exaltação da
cultura teutônica nos "Mestres Cantores", tudo isso
permeava seus escritos. Foi uma palestra que se tornou
célebre, proferida em 1933 e em que expressava dúvidas
quanto à influência de Richard Wagner sobre os assuntos alemães, que desencadeou a ira chauvinista e nacional-socialista e fez com que Mann não pudesse retornar
de seu refúgio suíço para Munique.
A música na sociedade
Adorno nutrira o sonho
de ser compositor; Alban Berg fora um de seus professores. Ele havia composto música de câmara no espírito
da Segunda Escola de Viena. Publicara diversos artigos
de crítica musical e estava definindo, de maneira ainda
não realizada por ninguém até então, uma esfera na
qual as pesquisas sobre o significado e a epistemologia
da música eram apresentadas conjuntamente com análises do contexto social da composição e apresentação.
De maneira singular, Adorno buscava combinar uma
musicologia em muitos casos altamente técnica com
preocupações abrangentes com relação ao papel da
música na história e na sociedade. O primeiro livro de
Adorno foi uma monografia opaca sobre Kierkegaard,
cujo diagnóstico estético-filosófico do "Don Giovanni"
de Mozart mostrou ser decisivo para ele. Nos anos 1940,
ele já estava redigindo um "magnum opus" -que nunca chegaria a ser concluído- sobre Beethoven, além de
material extenso sobre Wagner. A experiência da Califórnia já estava empurrando Adorno a considerações,
de modo geral irritadas, sobre a função da música clássica e popular numa democracia de consumo de massas, incorrigivelmente populista.
A colaboração ativa começou durante o verão de
1943, quando Mann estava trabalhando sobre o quarto
capítulo de "Doutor Fausto". Essa aliança foi documentada de perto no volumoso diário de Mann e em suas
memórias sobre a gênese do romance ("Die Entstehung
des Doktor Faustus"). Ela foi objeto de estudo secundário de musicólogos, filósofos da arte e críticos literários.
Agora temos as cartas relevantes. É difícil pensar em
qualquer tesouro comparável de material "genético" ou
mesmo de qualquer outra simbiose igualmente frutífera entre um escritor e seu "especialista da casa". Adorno
contribui não apenas com os detalhes técnicos referentes a processos instrumentais e de composição, mas
também com suas próprias percepções radicais acerca
do que é compor música sob a pressão da história musical anterior e de uma crise social. Ele emprestou a Mann
a versão manuscrita da primeira parte de seu livro "Filosofia da Nova Música", juntamente com suas anotações sobre Beethoven. Rascunhos foram trocados e longas conversas desabrocharam, sendo prolongadas e resumidas pelas cartas. Adorno improvisava e analisava
ao piano. Mann, por sua vez, lia para ele sua obra "in
progress". Levemente implícito em seu diálogo está o
pesadelo da história que se desenrolava na Europa.
O oitavo capítulo de Mann foi lido a Adorno em 27 de
setembro de 1943 e, mais tarde, revisto em resposta às
observações feitas por Adorno. O capítulo consiste nas
palestras de Wendell Kretzschmar sobre o Beethoven
de 1820 e sua última sonata para piano, opus 111. Bruno
Walter o considerou a mais profunda análise de Beethoven já empreendida. Nesse texto complexo, as
participações do autor e do exegeta são inseparáveis.
Ambos nutriam um fascínio de longa data pelo trabalho
da última fase de um artista, quer seja em Goethe, em
Beethoven ou em Mahler ("Morte em Veneza"). Mann
chega perto de reproduzir diretamente trechos do ensaio "Spätstil Beethovens" (O Estilo Tardio de Beethoven), de Adorno, quando descreve a maturidade especial das criações da última fase de um artista como sendo feita de lacerações, de desarmonias internas.
Forma em maturação
Tal dissonância, especialmente em Beethoven, não deve ser atribuída a banalidades biográficas, psicologizantes. Ela nasce da lógica da
forma em maturação que já havia sido discutida nos escritos de Willi Reich e do próprio Adorno sobre Berg
(que servem de subsídio a Mann). Resumindo o insight
que deve a Adorno, Thomas Mann conclui que "quando a morte e a grandeza coincidem, o que resulta é uma
objetividade ("Objektivismus') com viés para o convencional. Nesse processo, o magistral e o subjetivo se trasladam para o campo do mítico". Mann disse que "sempre se sentira metade músico".
Em suas ficções em prosa, ele realizara a textura das
formas musicais (a analogia tanto com Proust quanto
com Joyce chama a atenção). Por sua parte, Adorno ansiara por investir seus poderes e seus tormentos emocionais em construtos estéticos. Como ele diz numa
carta comovente de junho de 1945, conhecer Thomas
Mann tinha sido um sonho de sua juventude; agora,
tornara-se "um pedaço de utopia realizada".
Apesar do que deve ao episódio do Grande Inquisidor, em "Os Irmãos Karamázov", o capítulo 25 de
"Doutor Fausto" permanece como ponto alto de imaginação intelectual e psicológica na literatura. Não é apenas a discussão sobre o pacto feito com o diabo que o
torna inesquecível -é a forma como Mann transforma
em narrativa o frio úmido e desagradável, a aura estranhamente nauseabunda que emana da criatura que visita Adrian Leverkühn, uma criatura ao mesmo tempo
astuta e irremediavelmente mesquinha.
As reflexões feitas aqui devem muito a Adorno, mas a
voz satânica, cáustica e insinuante me parece ser mais
próxima da de Lukács. O que está em jogo é simplesmente a teoria da criação e a patologia estética do gênio
artístico-filosófico e da enfermidade mental que tinha
sido formulada pelo romantismo alemão e que assombrou Thomas Mann durante toda sua carreira.
Os criadores supremos, na arte e no pensamento, são
condenados ao colapso cerebral, ao ataque da desrazão
suicida, quer eles sejam Hölderlin ou Schumann,
Nietzsche ou Hugo Wolf (mais que Nietzsche, é o modelo em que se inspira o final medonho de Leverkühn).
A causa externa pode ser venérea, a "Esmeralda" infecciosa com a qual se tem um único e inadvertido contato.
Mas a raiz profunda é a da parte desempenhada pela
blasfêmia, pela automaldição em todos os atos eminentes do pensamento e da formação; é o crime de Prometeu, do modo como hipnotizou o jovem Goethe e tentou Beethoven. O néctar da realização artística e metafísica é veneno. O Satanás declama seu discurso sardônico de modo que focaliza tanto a Alemanha quanto a
música. A localização original do pacto fechado por
Fausto na Alemanha, a preeminência da Alemanha nos
campos da filosofia e da música declaram uma afinidade eletiva entre o gênio teutônico e o infernal. No Reich
de Hitler, pano de fundo implícito do diálogo, essa afinidade alcançou seu clímax natural.
Alegoria da esperança
Adorno mostrou-se mais
uma vez inestimável na "composição" da música de câmera de Leverkühn e, sobretudo, na de "Doctor Fausti
Weheklage" (Sofrimentos do Doutor Fausto), o lamento atormentado que acompanha o mergulho de Lev na
insanidade. Conforme mostram as notas de rodapé reproduzidas neste livro, a associação seminal de Orfeu
com Fausto, a reunião com os alunos de Lev, como numa Última Ceia negativa, mas também detalhes de dissonância e orquestração, tudo isso veio de Adorno. É
Adorno puro a máxima segundo a qual questionar a negatividade é também uma alegoria da esperança. De
maneira quase estranha, Mann não apenas se mostrava
receptivo às sugestões de Adorno, frequentemente
complexas e fragmentárias, mas também sabia transmutá-las em temas totalmente característicos de suas
próprias preocupações eternas.
Arnold Schoenberg, porém, fez objeções. Ele se sentiu
roubado pela adoção e explicação, por Adrian Leverkühn, de um sistema dodecafônico modificado. Ele sabia que tinha sido Adorno quem dera a Mann o material filosófico e musicológico que possibilitara essa
transferência. O reconhecimento de Mann, impresso
no final do romance, é dado em tom de altivez fria.
LIVRO PUBLICADO NA ALEMANHA REÚNE AS CARTAS TROCADAS ENTRE O ESCRITOR E
O FILÓSOFO DESDE O INÍCIO DOS ANOS 40, QUANDO SE CONHECERAM NA CALIFÓRNIA,
ATÉ 1955, NAS QUAIS DISCUTEM A CRIAÇÃO LITERÁRIA E O ESTATUTO DA ARTE SOB O
PANO DE FUNDO DO NAZISMO
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Seriam necessários muitos anos e mais discussões
acerbas, públicas e privadas, até que a briga fosse resolvida. Com razão, Adorno, que era admirador ardente
de Schoenberg, sentiu-se o perdedor na história. A reconciliação entre Mann e Schoenberg, por superficial
que tenha sido, foi recebida por ele com alívio.
O outro pivô musical dessa correspondência é Wagner. Durante todos os anos de "Fausto" e depois, Adorno estava trabalhando sobre seu "Versuch über Wagner" (Ensaio sobre Wagner). Mann o leu com atenção
apaixonada. Em 1952, Adorno especulou sobre analogias entre "Fausto" e Felix Krull, por um lado, e, pelo
outro, o "Anel", especialmente Hagen e Alberich. Mann
achou convincente a análise feita por Adorno das etapas iniciais da decadência burguesa em Wagner e aprovou a constatação feita por Adorno de que era a força da neurose de Wagner que lhe permitira dar-se conta dessa decadência dentro dele mesmo e transcendê-la.
O "comunismo abrandado" de Adorno
Na mesma carta de 30 de outubro de 1952, encontramos
uma das muito poucas alusões feitas por Mann ao "comunismo abrandado" de Adorno, a aquilo em seus
conceitos que lembra Lukács. Essa mesma carta, novamente em referência a Wagner, sugere que a alta literatura ocidental vinha sendo "um resumo apressado e
uma recapitulação paródica do mito do Ocidente pouco antes do cair da noite".
Nas cartas que trocam, Mann e Adorno falam de elementos cruciais a suas realizações. Já tínhamos disponível anteriormente a famosa declaração feita por Thomas Mann em 30 de dezembro de 1945 sobre sua estética da montagem. Ele entremeia motivos históricos, biográficos e literários -a relação de Madame von Meck
com Tchaikóvski, os triângulos amorosos em Shakespeare, elementos da vida pessoal de Nietzsche- para gerar determinados efeitos em "Doutor Fausto". Uma
nota de rodapé, "isto é derivado de Th. W. Adorno", teria parecido tolice. Quando se indaga, porém, elementos emprestados e variações sobre um tema anterior devem ser admitidos (o que, então, dizer de Schoenberg?).
Por sua parte, Adorno, pelo menos duas vezes, chega
perto de formular seu credo. Em 1º de agosto de 1950:
fundamentalmente, cada sentença é uma contradição e
uma contradição da contradição, cujo êxito é um golpe
de sorte, a realização do impossível -"a reconciliação
magnânima da intenção subjetiva com o espírito objetivo, onde é o próprio fato de ser dilacerado que constitui
o ser de ambos" (uma formulação radicalmente hegeliana). Em 1º de dezembro de 1952, com uma evocação
de Hegel: é central em Adorno a abstenção estética de
qualquer afirmação do positivo, embora uma "expressão ilimitada da esperança" seja muito mais próxima de
sua natureza.
Estratégia da abstenção
Qualquer acesso apressado ou demasiado fácil ao afirmativo corre o risco da
"inverdade", perigo esse de que as modernas ideologias
totalitárias e os movimentos estéticos modernos constituem um lembrete sinistro. Durante uma fase bárbara
da história, apenas uma estratégia da abstenção pode
ser apropriada. Quando os movimentos estudantis de
1968 se voltaram contra ele, Adorno se viu mais ou menos indefeso.
Preocupações mundanas se fazem sentir. Quando a
guerra chega ao fim, tanto Mann quanto seu "familiar"
estão incertos quanto a se devem ou não retornar à Europa devastada. Mann se confessa fascinado com a capacidade de recuperação que possui o povo alemão,
mas a idéia de voltar a viver na Alemanha Ocidental
provoca sua repulsa.
Adorno depende da restauração, por Horkheimer, de
um instituto de estudos sociais em Frankfurt, mas não
quer abrir mão da cidadania americana. Enquanto isso,
o macartismo e a Guerra Fria os levam a adotar uma atitude crítica em relação ao clima nos EUA. Enquanto
Mann fica cada vez mais alarmado com o que vê como
sendo políticas americanas belicosas e imperialistas,
Adorno tem uma visão mais desapegada. Após alguns
anos de hesitação e deslocamentos transatlânticos pendulares, Mann adota como seu local de descanso a ordeira e higiênica Suíça. Adorno finalmente se reinstala
na Alemanha, onde sua influência se amplia. O final é
comovente. Perto da morte, Mann confidencia que é
chegada a hora de sua "Montanha Mágica". Ao receber
a notícia da morte do mestre, Adorno diz a Katia Mann
[(1883-1980) mulher do escritor": "Eu o amava muito,
muito". Não é um sentimento habitual em Adorno.
Esta edição, muito bem preparada e cuidadosamente
anotada, nos provoca um toque de nostalgia. O idioma
patrício de Mann, a presunção recíproca de um saber
polímata que abrange desde a Antiguidade até Beckett,
de Palestrina a Webern, não faz mais parte de nosso
mundo. O "asceticismo" de Adorno assumiu um tom
mais acinzentado.
George Steiner é um dos principais críticos literários vivos. Professor
nas universidades de Cambridge e Genebra, é autor de, entre outros,
"Nenhuma Paixão Desperdiçada" (ed. Record) e "Grammars of Creation" (Gramáticas da Criação, ed. Faber & Faber). O texto acima foi publicado no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain.
Onde encomendar
"Briefwechsel - 1943-1955" (org. Christoph Gödde e Thomas
Sprecker, ed. Suhrkamp, 176 págs., 20 euros), de Theodor Adorno e Thomas Mann, pode ser encomendado, em SP, na livraria
Bücherstube (r. Bernardino de Campos, 215, Brooklin, CEP
04620-001, tel. 0/xx/ 11/5044-3735).
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