|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
A história e análise das composições da bossa nova e a relação
entre música e literatura são temas de dois lançamentos
Atalhos e descaminhos da pesquisa
A Linguagem Harmônica da Bossa Nova
248 págs., R$ 38,00
de José Estevam Gava. Ed. da Unesp (praça da Sé,
108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3242-7171).
Literatura e Música
224 págs., R$ 24,00
de Solange Ribeiro de Oliveira. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).
Walter Garcia
especial para a Folha
Salvo erro de avaliação, dois lançamentos representam caminhos
que, não sendo os únicos, indicam
processos significativos do estudo
da música na universidade. "A Linguagem Harmônica da Bossa Nova", de José
Estevam Gava, originou-se de seu mestrado na Universidade Estadual Paulista ,
desenvolvido após o autor notar que
"faltavam partituras ou análises estritamente musicais" do movimento. A intenção, contudo, foi ampliar o número
de leitores potenciais para além do círculo "formado por músicos e estudantes de
música".
Assim, até o terceiro capítulo busca-se
organizar "uma espécie de "história condensada'", deixando-se a análise harmônica para o último. A condensação, porém, apresenta deslizes indesculpáveis.
O principal é a falta de referências bibliográficas no capítulo um. Sem que se indique a fonte, são emprestados do livro
"Chega de Saudade", de Ruy Castro, não
poucos dados e observações. Comentando "Opinião de Nara", Gava segue Castro até ressaltar com aspas uma ironia do
jornalista -o disco seria uma "fuga de
Ipanema".
O deslize também ocorre em relação a
idéias tomadas dos artigos "Balanço da
Bossa Nova", de Júlio Medaglia, e "João
Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa
Nova", de Lorenzo Mammì.
Paráfrase
Todos esses textos ao menos integram as "Referências Bibliográficas", ao final. Fato mais grave acontece
no capítulo 3, quando se lê: "A contribuição de João Gilberto está na superação da
oposição entre ambas estruturas [profunda e superficial" na medida em que,
sobre um repertório tonal, constrói seu
canto mediante nuanças mínimas e em
múltiplos níveis. João relativiza os elementos mais aparentes (superficiais) da
música e os traduz ou recria por meio de
nuanças entoativas, rítmicas, timbrísticas e harmônicas e por relações contrapontísticas entre voz e instrumentos,
conferindo profundidade à canção"
(pág. 95).
O trecho é uma paráfrase de "O Som e
o Sentido", de José Miguel Wisnik, ausente da bibliografia final: "João Gilberto
é a superação da oposição entre o profundo e o superficial" (pág. 52); "O canto
de João Gilberto trabalha sobre um repertório tonal popular "comum", mas
através de uma rede precisa de nuanças
mínimas em múltiplos níveis (entoativos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos,
contraponto voz/instrumento), que supõem uma leitura vertical dos bastidores
da canção" (pág. 209, nota 42).
Outros problemas dizem respeito ao
próprio desenvolvimento do texto. Gava
compila autores (citados, como se deve)
e emite opiniões sem articular as partes.
Hipóteses sobre o elitismo e a curta duração do movimento (1958-62), por
exemplo, são lançadas atentando para as
dificuldades da forma estética da bossa
nova, mas páginas adiante uma outra hipótese se centra nas vigências da jovem
guarda, da música de protesto e da canção sentimental, sem que as duas passagens sejam claramente relacionadas.
Seja como for, a originalidade da pesquisa está prometida para a análise da
harmonia. Novamente há um sério deslize. As partituras da bossa nova não tomam por base gravações da época, como
Gava afirma, mas três "songbooks" produzidos por Almir Chediak e citados na
bibliografia. As partituras de "Samba de
uma Nota Só", "Desafinado", "Dindi",
"Maria Ninguém", "O
Barquinho" e "Manhã de
Carnaval" discordam das
gravações já na tonalidade. "Insensatez" e "Samba
Triste" seguem à risca as
versões de Chediak, as
quais se assemelham, todavia, às gravações. "Chega de Saudade" e "Corcovado" anotam alguns
acordes diversos tanto de
João Gilberto quanto de
Chediak. As dez partituras da velha guarda, por
seu turno, respeitam as
gravações indicadas.
Diante disso, a análise
acaba diminuída, o que é
uma pena, pois o objetivo
da pesquisa é inédito e interessante: comparar a
harmonia da bossa nova à
de canções da década de
30.
Levada com rigor, daria
um trabalho essencial, o que implicaria,
entretanto, também a análise funcional
das harmonias em estilo bossa nova (e
não só das harmonias em estilo velha-guarda, como se fez), ao lado da análise
da forma musical das composições. Só
assim se avaliaria com precisão um dos
projetos de Tom Jobim: uma melodia recorrente, por isso um tanto estática, colorida por diferentes acordes cumprindo
cada uma das três funções harmônicas
principais, num movimento completo.
Ou se entenderia a construção musical
de "O Barquinho" (estrutura melódico-harmônica executada em três tons que,
na terceira vez, muda de direção e retoma a tonalidade inicial) ou da canção tradicional (duas partes, muitas vezes a primeira no modo maior e a segunda no
menor).
O que não se compreende é haver tantos equívocos em uma publicação do
projeto "Edição de Textos de Docentes e
Pós-Graduados da Unesp". Em meio a
isso, as próprias contribuições (como a
idéia de que os ornamentos da década de
30 passaram a determinar a harmonia da
bossa nova) soam abafadas. Sintoma da
urgência com que a produção acadêmica
se viu obrigada a prestar contas da quantidade de títulos do seu catálogo, nos últimos anos?
Melopoética cultural
Por sua vez,
"Literatura e Música", da pesquisadora
da Universidade Federal de Minas Gerais
Solange Ribeiro de Oliveira, propõe uma
análise interdisciplinar adequada a três
tipos de obras artísticas: formas mistas,
como a canção ou a ópera; músicas que
se valem de técnicas literárias; textos literários que utilizam sugestões musicais.
Como se nota, o respeito à natureza
dos objetos confere firmeza ao ponto de
partida. A metodologia, denominada
"melopoética cultural", enfatiza correspondências entre a construção das obras
e o contexto social, não se limitando a
um estudo formalista. Assim o trabalho
se volta para o caráter híbrido de criações
de "culturas marcadas pela experiência
da colonização", enfatizando a feminização do dominado e o desterro espiritual
dos latino-americanos como designadores, entre outros traços, da interpenetração de forma artística e dinâmica cultural -desta última excluindo infelizmente a mercantilização da arte.
Tais análises encerram uma densa exposição teórica, pois a autora lembra de
início que a abordagem interdisciplinar
exige "competência, rigor crítico, conhecimento". Sua pesquisa vence esses obstáculos com justeza, sem ostentar erudição, apontando um caminho que merece
ser seguido por quem queira combater a
rima de trabalho intelectual com marketing pessoal.
Walter Garcia é músico e professor da Pontifícia
Universidade Católica (PUC- SP). É autor de "Bim
Bom - A Contradição sem Conflitos de João Gilberto" (ed. Paz e Terra).
Texto Anterior: lançamentos Próximo Texto: Paris, Lisboa e Miami dos trópicos Índice
|