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O MAIS! TRAÇA O MAPA TENSO DA FORMAÇÃO DOS FUTUROS
PADRES DA CIDADE DE SÃO PAULO, POLARIZADA ENTRE UMA
INCLINAÇÃO "INTELECTUAL" E OUTRA MAIS "POPULAR", LIGADA
AO PADRE MARCELO; NÚMERO DE VOCACIONADOS AUMENTA
NA DÉCADA DE 90, MAS NÍVEL SOCIOECONÔMICO DIMINUI
VIDA DE SEMINÁRIO
Caio Caramico Soares
free-lance para a Folha
Na mesma hora em que Jesus, o Cristo, /sofreu
a sede, sobre a cruz pregado, /concedia a sede
de justiça e graça/ a quem celebra o seu louvor
sagrado." Revezando-se em solos e partes corais, os seminaristas da casa de formação Bom Pastor,
no bairro do Ipiranga, prosseguem a recitação da prece.
Estão realizando a chamada oração da "hora média",
que ocorre entre as 11h45 e as 12h todos os dias, "religiosamente". Após a oração, terão cerca de meia hora de
almoço, no refeitório, para então se dedicarem a atividades de limpeza da casa, a estudos ou reuniões e à missa do final da tarde. Não são monges, mas quase tomam
para si a divisa beneditina "ora et labora".
O seminário Bom Pastor foi um dos locais visitados
pelo Mais! para verificar a formação do sacerdote católico hoje. Fundada em meados dos anos 80, é uma das
quatro casas pelas quais essa formação transcorre dentro da Arquidiocese de São Paulo. Fica ao lado da Faculdade de Teologia Nossa Senhora de Assunção, principal
instituto do gênero na cidade. Estudando no período
matutino -o curso noturno é dedicado aos leigos-,
os seminaristas que moram no Bom Pastor são aqueles
que já chegaram à etapa final da preparação para o ingresso no clero, etapa constituída pelo bacharelado em
teologia (ao longo de quatro anos), após a licenciatura
em filosofia, "laica", que dura três anos (ou dois, noutras dioceses, sem oferecer o diploma de licenciatura).
É sinal dos tempos que esse tipo de tema vá para as páginas de jornal? É o que pensa o diácono (título correspondente à primeira ordenação de um clérigo, pouco
antes de ele se tornar padre) Vandro Pisanesche, 27.
Morador do Bom Pastor, ele diz: "Um seminário devia
ser algo normal. Fazer uma reportagem sobre isso já
mostra que se tornou algo de espetacular, de diferente,
em nossa sociedade".
Projetada para no máximo 20 pessoas, sendo que 36
estudantes moram hoje no seminário, a superlotada capelinha do Bom Pastor é símbolo, nesses minutos de reza coletiva, de um sucesso de quórum que seria impensável há pouco tempo. Essa mesma tendência de alta
nas vocações levará, aliás, a casa a ser remodelada e ampliada, até o final do ano, passando de uma capacidade
total de 50 para 80 moradores. "Quando foi feito isso
aqui, achava-se que poderia não ter muitas vocações, e
o espaço poderia ser utilizado, se não houvesse seminaristas, para uma outra função. Mas a expectativa agora
do novo cardeal-arcebispo [d. Cláudio Hummes] é de
que tenha mais vocações, então por isso ele quer proporcionar esse novo seminário", justifica o reitor [diretor] da casa, padre José Miguel de Oliveira, 60.
A situação nos anos 80, quando foi erigido o Bom Pastor, de fato não autorizava muito otimismo. Vinha-se
de uma década em que muitos padres haviam abandonado a batina, as vocações minguavam, tabus como a
dedicação exclusiva e o celibato ameaçavam ruir.
Segundo os dados mais recentes do Ceris (Centro de
Estatística Religiosa e Investigações Sociais), havia em
2000 um total de 13.824 seminaristas no Brasil. O número, praticamente idêntico ao de duas décadas anteriores
(13.921), é significativamente maior do que o de candidatos em 1990 (9.358), razão pela qual é possível
falar, senão num boom, ao menos em um movimento
de recuperação após a grave crise de vocações da igreja
brasileira. Na última década, o número total de padres
no Brasil (que chegou, em 2000, à marca de 16. 772)
cresceu 14,6%, o que confirma e acentua a tendência de
alta já registrada entre 1980 e 1990 (13,6%) -embora
aquém dos 27,2% de crescimento ao longo dos anos 60.
Em comparação com 1980 e 90, o número de ordenações em 2000 é bem superior: 541 contra, respectivamente, 224 e 341.
A igreja ainda não considera os números ideais para
dar conta de desafios como a concorrência dos evangélicos (que já correspondem, segundo o Censo do IBGE
de 2000, a mais de 15% do total dos brasileiros, contra
73,8% de católicos, queda de dez pontos percentuais em
relação a 1991). De todo modo, se, como dizem as Escrituras, a messe é muita, e os operários, poucos, ao menos
eles já não se reduzem como na década de 1970, em que
o total de presbíteros chegou a encolher 3,1%.
Como explicar esse milagre da multiplicação? Como
entender que uma opção tão "institucional", tão supostamente cheia de privações e de grilhões, quanto a de
ser padre sobreviva e dê sinais de um vigor novo, numa
época propícia, no plano da religião, a sincretismos e
"bricolagens" que permitem a um mesmo indivíduo,
sedento por uma espiritualidade sem coações dogmáticas e morais, amanhecer numa vigília pascal católica e
acabar a noite seguinte num terreiro?
Uma primeira explicação talvez esteja nessa própria
"pós-modernidade religiosa". É o raciocínio seguido,
por exemplo, por Silvia Fernandes, coordenadora do
núcleo de pesquisas sociorreligiosas do Ceris, órgão oficial da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Fernandes, que desenvolve doutorado sobre as motivações de seminaristas e noviças no Rio de Janeiro, diz
que o "revival" das vocações é só uma das facetas do
crescente apelo, especialmente entre os jovens, do desejo de ressacralização da vida, de contato com o divino,
movimento também subjacente ao aumento de interesse por religiões orientais, esoterismo etc.
"Você tem ofertas múltiplas, um mundo no qual você
pode escolher qualquer coisa. Isso para alguns dá a sensação de liberdade e para outros, a sensação de anomia.
Afinal, quem sou eu nesse mundo de tantas ofertas? Eu
preciso de alguma âncora, alguma segurança, e a vida
sacerdotal vai dar isso [ao candidato seminarista], uma
espécie de segurança interna", diz Fernandes. "Esses jovens [que aderem à vida consagrada] têm uma representação da juventude que passa muito pelo senso comum. Eles acham que a juventude é uma juventude
perdida e sem Deus", sendo a vida religiosa o resgate
possível e a saída desse espaço mundano.
O secretário-geral da CNBB, dom Odilo Pedro Scherer, observa que o esforço de promoção das vocações,
que remonta ao início dos anos 80, se funda na descentralização e intensificação do trabalho nas paróquias do
país e é uma reação a um período "em que muitos padres abandonaram o ministério, houve pouco incentivo
às vocações, acreditava-se num outro modelo de padre
que acabou não se concretizando. Calculava-se muitas
vezes que o padre pudesse ser casado, ter uma profissão
e que exercesse o ministério em meio expediente".
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