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"VERÃO EM BADEN-BADEN", DE LEONID TSÍPKIN, INDAGA
POR QUE O FEROZ ANTISEMITISMO DE DOSTOIÉVSKI EXERCE
TANTO FASCÍNIO SOBRE OS JUDEUS
O INFERNO DO QUESTIONAMENTO
Jacó Guinsburg
especial para a Folha
A literatura de ficção em seus modos tradicionais, que poderiam incluir nesse caso, sem
maior contradição, uma boa parte do assim
chamado moderno (com exceção, é claro, do
que se lhe agregou como "pós"), parece a muitos e de há
muito ter esgotado o seu repertório criativo de inovações que poderiam ser tidas como realmente originais.
Tudo se afigura haver sido dito ou, ao menos, desqualificado pelo enfarado olhar do déjà vu. Poucos, dentre os
que se ocupam dela não só por gosto, mas principalmente por uma relação de ofício, esperam se deparar
com alguma surpresa... Após um primeiro bocejo condescendente, poderão não chegar ao segundo bocejo
confirmativo, começando a ficar com a articulação bucal mais distendida (não a ponto de deixar cair o queixo
em proeminência embasbacada) por um inesperado
repuxão de "alto lá", "atenção", "não seja tão maquinal
na recusa e tão fechado no que a invenção literária pode
reservar-lhe e, de fato, ainda tenha a oferecer-lhe".
Foi o que aconteceu com um aposentado leitor, dublê
de crítico, que em certo momento de sua vegetativa disponibilidade se pôs a ler a novela de Leonid Tsípkin,
"Verão em Baden-Baden" (Companhia das Letras,
trad. Fátima Bianchi, 208 págs., R$ 36).
Deliberadamente deixou para o fim a introdução em
que a celebrada e polêmica ensaísta americana Susan
Sontag faz a apresentação da obra e do autor. Isso porque sempre suspeitou que tais preâmbulos -embora
não se furtasse a fazê-los, quando solicitado- induzem
a um prejulgamento e embotam a experiência direta de
quem vai se relacionar com um texto ficcional.
Assim, pelas linhas do volume que lhe havia chegado
on-line de Nova York, embarcou no trem da linha Moscou-Leningrado (ou, na nova prolação pós-soviética,
Petersburgo, com o santo oculto) juntamente com o
novelista e se viu com ele a correr pelos trilhos da bitola
larga de dois séculos, tanto russa, quanto alemã, em
perseguição à verdade sobre Dostoiévski, na alma possessa de "O Jogador" e no jogo febril dos estados de espírito de uma complexa personalidade desfazendo-se e
recompondo-se prismaticamente ao azar da roleta no
cassino de Baden-Baden.
O itinerário, apesar dos vários ramais que são percorridos em sincronia, num verdadeiro feito de ubiqüidade escritural, é o das páginas do diário de Ana Grigoriêvna, segunda mulher de Fiódor, e particularmente as
que ela dedica ao seu convívio com o marido durante a
dramática e emblemática viagem do casal à estação de
águas, onde o escritor-personagem faz as apostas de sua
compulsiva busca da fortuna nas partidas com o destino, na vida e nas letras.
Pano verde existencial
Como jogadas nesse pano
verde existencial, o narrador-leitor, à medida que vai
desfiando imagens de sua invocação em elementos e tecido de relato, torna atual e sensível sentimentos, paixões, obsessões, premonições e antevisões que presentificam textualmente a epiléptica instabilidade emocional de Dostoiévski e o seu visionário poder de penetração nas regiões profundas do existir humano, onde, segundo Rilke, "tudo é lei".
Se o ponto de aglutinação desse enredo é o amor como idealização e não menos posse do outro, arrebatamento dos sentidos e entrega erótica, a ele se contrapõem e o rebatem, em erupções sadomasoquistas, as
ondas revoltas da raiva, da frustração, da loucura persecutória e do egocêntrico culto à própria genialidade
-um magma em que se fundem as relações do escritor
vidente, mesmo quando expressas no plano pessoal e
conjugal, com o seu mundo russo e europeu.
Aí se desenha, na contemplação lírica da natureza e
no confrangido olhar sobre as "pobres gentes", o Dostoiévski místico e cristão fervoroso, mas também, como
sua contraface, o escritor imbuído de sua importância
que se empenha no ajuste de contas filosófico, religioso
e artístico com aqueles que se lhe opõem estética e intelectualmente e lhe negam, na disputa histórico-crítica, o
lugar que, a ele, parece ser devido e que sua obra merece
ocupar, a seu ver, na literatura russa da época, mas sobretudo da posteridade.
Assim, referidos pelos fatos que balizaram a recepção
dada a princípio ao jovem romancista pelo círculo mais
representativo e determinante dos valores vigentes na
produção literária da Rússia de então, Bielinski, Turguêniev, Nekrássov, Gontchárov e Panâiev se enformam escrituralmente diante do leitor, numa sucessão
cinematográfica da palavra-imagem, magistralmente captada pela busca de Dostoiévski no tempo de Dostoiévski e no da recuperação do tempo do autor no monólogo interior de Tsípkin.
Torvelinho psíquico
Tsípkin, porém, na sua viagem imaginativa e novelística, não fica nisso. Por uma
técnica narrativa singular que resulta efetivamente em
uma inovação de linguagem (à medida que o fluxo narrativo, apesar de alimentar vários cursos paralelos, corre ininterrupto e célere, com respiro apenas de hífens e
pontos finais), põe a falar e traz à cena ficcional as vozes,
os pensamentos, as situações e as tramas não só do universo do romancista e a visão e a reação de Ana Grigoriêvna no torvelinho psíquico das tentações, das aspirações e das ilusões em que febricita a alma visionária e
apaixonada de Dostoiévski, como logra inserir, em contraponto e no contexto monológico do eu narrador, a
dimensão de sua própria vivência, enquanto judeu russo a braços com a sua contemporaneidade, isto é, a da
revolução bolchevique, do stalinismo, da guerra, do anti-semitismo e da marginalização em um meio a que todo o seu ser e modo de ser o ligam, o qual, não obstante,
o repele em essência, visceralmente.
É a essa conclusão que o desenvolvimento do relato
induz, quando a viagem se consuma e o autor, tendo
chegado ao seu destino na antiga capital imperial e se
hospedado em casa de uma amiga de sua mãe (uma judia russa cuja vida é evocada em seu curso no período
soviético, na guerra e posteriormente -não diferindo
em nada do que todo o povo russo passou e sofreu), folheia, antes de adormecer, o penúltimo volume de uma
edição da obra de Dostoiévski, o "Diário de um Escritor". E, ao deparar-se com o tópico intitulado "A Questão Judaica", propõe-se-lhe algo que já viera antes à sua
mente, mas que agora se consubstancia numa reflexão
em que se estabelece o outro polo de sua angustiosa e
dilemática busca de si próprio em Dostoiévski: "(...) sua
descoberta nem chegou a me surpreender, porque em
algum lugar ele tinha de concentrar todos esses judeus,
judeuzinhos, a judiaria e suas crias, com que ele tão à
larga borrifou as páginas de seus romances -ora com o
tipo do Liámchim, de "Os Demônios", que se fazia de
bufão, mas chegava a ganir de medo, ora com o tipo do
arrogante e ao mesmo tempo covarde Issai Fómitch, de
"Memórias da Casa dos Mortos", que não tinha escrúpulos em emprestar dinheiro a juros exorbitantes a seus
companheiros condenados, ora com o tipo do bombeiro de "Crime e Castigo", com sua "eterna aflição rabugenta, que com tanto azedume se estampava em todos
os rostos da tribo judia, sem exceção" e com sua pronúncia risível, reproduzida no romance com um prazer
requintado, especial, ora com o tipo do judeu que crucifica uma criança cristã e em seguida corta seus dedos,
deleitando-se com a agonia dela (o conto de Liza Khokhlávova, de "Os Irmãos Karamazóv'), e mais freqüentemente com o tipo dos usurários anônimos, dos comerciantes sem escrúpulos e dos trapaceiros miúdos, que
nem sequer são descritos, mas simplesmente mencionados como judeuzinhos e ainda com mais freqüência
por substantivos comuns, denotando os traços mais
baixos e vis do caráter humano- não havia nada de
surpreendente no fato de o autor desses romances, no
fim de contas, ter expressado em algum lugar seu ponto
de vista sobre esse tema, apresentado finalmente sua
teoria -entretanto, não havia nenhuma teoria especial,
mas argumentos e mitos anti-semitas bem banais (que,
entre outras coisas, eram aceitos até aqueles dias): sobre
o envio de ouro e brilhantes pelos judeus à Palestina, sobre a judiaria mundial, que com seus tentáculos vorazes
por pouco não enredava o mundo inteiro, sobre a exploração inclemente e o embriagamento dos russos pelos judeus, o que tornava impossível a concessão de direitos iguais aos judeus, caso contrário eles acabariam
por devorar completamente o povo russo e etc.- eu lia
com o coração batendo, esperando encontrar ao menos
uma luz em todas dessas reflexões que poderiam ser ouvidas de qualquer membro da Centúria Negra, ao menos um movimento em outra direção, uma tentativa de
ver toda a questão de um ponto de vista novo -os judeus tinham permissão apenas para professar sua religião e nada mais, e me pareceu estranho ao ponto do
implausível que um homem tão sensível aos sofrimentos humanos em seus romances, tão cioso defensor dos
humilhados e ofendidos, que pregava ardorosamente e
até quase freneticamente o direito à existência de cada
criatura terrestre e que cantava hinos de exaltação a cada folhinha e a cada talo de planta, que esse homem não
tivesse encontrado uma única palavra em defesa ou em
justificativa de um povo perseguido ao longo de milhares de anos -seria ele tão cego? ou talvez estivesse cego
de ódio?- e ele nem mesmo se referia aos judeus como
um povo, mas como uma tribo, como se fossem uns selvagens das ilhas da Polinésia -e dessa "tribo" faziam
parte eu e numerosos conhecidos ou amigos meus, com
os quais eu discutia questões sutis de literatura russa, e a
essa mesma "tribo" pertenciam Leonid Grossman, Dolínin, Zilberstein, Rosemblium, Kirpótin, Kogan, Fridlender, Bregova, Borschiévski, Gozenpud, Milkina,
Gus, Zundilóvitch, Chklóvski, Biélkin, Bergman, Dvóssia Lvovna Sórkina e uma grande quantidade de críticos
literários judeus, que detêm quase o monopólio dos estudos da herança literária de Dostoiévski- havia algo
de pervertido e até, à primeira vista, enigmático nesse
afã apaixonado e quase reverente com que eles dissecavam e até hoje continuam a dissecar os diários, as cartas, as anotações, os rascunhos e até os menores fatos
que se referem a um homem que desprezava e odiava o
povo ao qual eles pertenciam -algo que lembrava um
ato de canibalismo cometido contra o chefe da tribo inimiga- é possível, entretanto, que essa atração especial
que Dostoiévski parece exercer sobre os judeus possa
revelar alguma outra coisa: um desejo de se esconder a
suas costas, como se fosse ele um salvo-conduto -algo
como a aceitação do cristianismo ou da cruz pintada na
porta de uma casa judia na época do pogrom- de resto, não se pode pura e simplesmente excluir, aqui, o dinamismo marcante dos judeus, particularmente nas
questões que se referem à cultura russa e à conservação
do espírito nacional russo, o que, aliás, está completamente em conformidade com a hipótese precedente
-já não se ouvia o ruído de bondes passando do lado
de fora, eu havia apagado a luz fazia tempo..." (págs.
167-170).
Na indevassável noite
de Petersburgo, o "duplo"
do narrador torna a emergir da eternidade do tempo -o fantasma de Dostoiévski
volta a persegui-lo
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Consciência atormentada
Mas, ainda assim, o
narrador não consegue adormecer. Na indevassável
noite de inverno de Petersburgo, o seu "duplo" torna a
emergir da eternidade do tempo de uma vigília que se
faz insônia e de cujas sombras se projeta "uma figura
solitária, de calças justas xadrez, com cartola preta e
uma sobrecasaca preta berlinense com os bolsos estufados de sanduíches e as abas esvoaçando" a correr "pela
plataforma coberta de neve de uma estação de trem entre Baden-Baden e a Basiléia, saltitando, fazendo reverências..." (pág. 170) -o fantasma de Dostoiévski volta
a persegui-lo.
No desenvolvimento final da novela, levando a cabo o
propósito de sua viagem, o narrador vai visitar o apartamento-museu em que o autor de "Os Irmãos Karamazóv" viveu com Ana Grigoriêvna e os filhos, após o retorno do exterior e onde veio a morrer. No percurso,
obsessivamente impelido por sua busca, começam a se
lhe apresentar, numa visão espectral, personagens saídos dos romances de Dostoiévski e incidentes com o
próprio escritor que tiveram aquelas ruas por cenário.
E, quando chega ao seu destino e, como todo visitante,
vai adentrando os aposentos e perpassando os objetos
em que o olhar ainda pode surpreender a lembrança de
seus antigos donos, sua imaginação já está imersa de
novo no diário de Ana Grigoriêvna, recompondo novelisticamente seus registros das vicissitudes daqueles
anos em que, sob o zelo amoroso da mulher e as preocupações desta com o futuro da família, Dostoiévski e
sua atormentada consciência são levados ao leito de
morte. Tsípkin o realiza com mão de mestre, em quadros que merecem um lugar à parte na arte narrativa de
nosso tempo.
Seu culto a esse devassador dos abismos do espírito
humano se faz visão do insondável mistério da existência e contingência do homem, na figura do gênio.
Mas, ao fim, o autor de "Verão em Baden-Baden" desce do céu de sua admiração para o inferno de seu questionamento. Acorda de sua contemplação extática e
pergunta-se angustiadamente: "(...) o que, propriamente, eu vim fazer aqui? -por que é que me sentia tão estranhamente atraído e seduzido pela vida desse homem
que desprezava a mim ("é evidente", "é sabido", como ele
gostava de falar) e aos meus semelhantes? -e não teria
sido por isso mesmo que eu vim para cá na calada da
noite e fiquei andando, como um ladrão, por essas ruas
ermas e desertas, abarrotadas de neve? -não teria sido
por isso que, ao visitar seu apartamento-museu na Kuzniétchnaia ou alguns outros lugares relacionados a ele
me mantivera à parte ou na retaguarda, como se tivesse
ido parar ali por acaso e nada disso tudo me interessasse
muito?..." (p. 206).
Jacó Guinsburg é professor emérito da Escola de Comunicações e Artes da USP e autor de "Stanislávski e o Teatro de Arte em Moscou" (ed.
Perspectiva), entre outros livros.
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