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PONTO DE FUGA
Uma lente nas trevas
Os filmes de Roman Polanski são tão diversos entre si
que parece difícil encontrar-lhes uma unidade. Esse caráter díspar vem, é provável, da paixão que o diretor demonstra por um cinema capaz de contar histórias, de
dramatizar personagens, não importando qual gênero
seja. A recente retrospectiva do cineasta em São Paulo
permitiu constatar as constantes obsessivas e profundas que ocorrem nessa multiplicidade de superfície.
Polanski veio ao Brasil para a mostra, deu entrevistas,
prestou-se a perguntas do público. Fala com prazer de
questões específicas às filmagens; as respostas fluem
menos quando se trata de pontos que impliquem alguma "visão de mundo". Seus filmes trazem, no entanto,
inquietações tremendas, que retornam sem cessar. Elas
partem da experiência do mal, brotando facilmente em
espaços confinados, que são como laboratórios onde é
possível observar seres humanos se debaterem.
O mal interno aos personagens, implacável em sua
evolução, não é explicado, não tem razões psicológicas.
Ele se instala, como no caso de "Repulsa ao Sexo"
(1965): flutuam ali signos psicanalíticos em águas menos esclarecedoras que poéticas. Não é apenas interior,
espalha-se pelo mundo, como conta o final de "A Dança
dos Vampiros", de 1967. Curiosamente, porém, não é
dado a todos. As maldades quotidianas, pequenas, parecem não fazer parte desse Mal maiúsculo, verdadeiro
e superior. "O Último Portal", de 1999, obra pouco amada e no entanto tão fascinante, demonstra que o diabo,
encarnação suprema do mal, é difícil de ser atingido.
Desolação - O Mal, o grande Mal, tem, na obra de Polanski, seus eleitos, que atinge de maneira devastadora.
Mostra-se em escala excepcional e terrível. Não parece
ser iluminado por uma ética nem sequer passível de justiça. O sexo é ótimo veículo: aparece duas vezes, em "O
Bebê de Rosemary" (1968) e "O Último Portal", como
instrumento do diabo.
"A Morte e a Donzela", de 1994, começa como um
"whodunit" de coloração política e termina em inextricáveis laços entre vítima e carrasco: no final, invadidos
pela música de Schubert, ambos se unem pelo olhar, indissolúveis. Eles haviam se juntado pelo mal que os
atingira numa época conturbada e que permanecera
dentro deles. A passagem do tempo mostra que cada
um é não marcado pela maldade desde sempre e para
sempre, mas é invadido por ela, como por um flagelo.
Acarreta marcas, seduções, ambigüidades. Uma vez
ocorrida, não há punição que possa remediar. Polanski
não se conforma com maniqueísmos. Talvez, em seu cinema, o bem nem possua uma espessura; tudo se passa
como se ele fosse apenas a ausência do mal. O mal é,
existe; o bem se configura como seu vazio, em momentos de trégua. Se o mal privilegia alguns, se não é dado a
todos, se desencadeia inevitável e sem solução.
Motor - Um crítico formulou a expressão "alegre angústia" para os filmes de Polanski. Alegre é um adjetivo
um pouco excessivo, mas é verdade que o cineasta faz
brotar uma angústia acompanhada por ironia e humor.
As angústias de Polanski nunca são inertes; encerram
uma energia interna, propulsam as tramas, habitam os
personagens, transformam-se em aventura.
Cuidado - A força criadora de Polanski sabe conjugar a
dinâmica da narração pulsante com um cuidado minucioso do detalhe, que controla gestos e objetos. A isso se
acrescenta um modo caloroso de captar as cenas. Ele
declarou tomar suas distâncias com o método de Hitchcock, que vinha filmar com a cena pronta na cabeça,
com o "storyboard" muito preciso, que se impõe. Com
essa concepção mental, ele prefere descobrir na hora os
melhores gestos e os melhores ângulos. Conta que não
pensa em termos de enquadramento; não instala uma
câmera no momento dos ensaios, de modo a que os atores evitem representar para a objetiva. O resultado é um
equilíbrio entre rigor, precisão na minúcia, força narrativa, verdade humana. Tudo isso confere uma base realista, a partir da qual os filmes de Polanski decolam em
direção a atmosferas estranhas e perturbadoras.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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