|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ brasil 505 d.C.
"Ensaios de Filosofia Ilustrada", de Rubens Rodrigues Torres Filho,
abordam a relação íntima entre
leitura e escrita
O passado e o futuro do signo
Bento Prado Jr.
Publicado, em sua primeira edição,
há quase 30 anos, talvez somente
agora estes "Ensaios de Filosofia
Ilustrada", de Rubens Rodrigues
Torres Filho, possam revelar toda sua finura e seu brilho. O imediatamente contemporâneo não se deixa ver de modo nítido:
com o passar do tempo, certos maneirismos, alguns dogmas no fundo, um véu de
ideologia dissolveram-se, tornando mais
visível a originalidade destes escritos. Para
entrar já no nosso assunto, não basta ler, é
preciso reler -ou seja, ler a uma distância
que devolva resistência ao escrito, de modo que a leitura não a dissolva em suas expectativas mais ou menos conscientes. É o
que aprendi relendo este livro e aprendendo a lê-lo como se fora pela primeira vez.
Nem é outro -agora se torna claro- o
tema do livro ou o fio condutor que atravessa todos os ensaios: a passagem constante, sempre em metamorfose, do escrever ao ler, do ler ao escrever. Uma hermenêutica? Talvez essa fosse uma boa palavra,
se a filosofia do século 20 não a tivesse impregnado de metafísica e de teologia. Filologia talvez fosse melhor, desde que não
entendida em seu sentido técnico, desde
que compreendida na sua osmose com filosofia: numa osmose que modifica o sentido escolar de ambas as palavras. O amor
pelo "logos", o cuidado com a escrita, a
constante interrogação pelo significado da
significação...
Não é por modéstia que o autor se situa a
uma certa distância do filósofo. Não se pode entrar na filosofia sem distanciar-se um
pouco dela, como é mais claro hoje do que
na década de 70, quando imperava, entre
outras, a ideologia do estruturalismo ou
outras que igualmente faziam da filosofia
uma "Strenge Wissenschaft". É a própria
univocidade da filosofia -sua identidade- que é colocada em questão já na primeira página do livro, início da belíssima
conferência "O Dia da Caça", a que tive o
prazer de assistir (sentado, aliás, ao lado de
Gérard Lebrun, que não podia conter, durante a audição, a expressão continuada de
seu entusiasmo e de sua admiração). Entre
a filosofia antiga, a medieval e a setecentista, com efeito, há abismos, e a figura do filósofo não é jamais a mesma. E nós, que estamos delas separadas pela filosofia crítica
e pelo idealismo alemão, como podemos
nós nos identificar? Como ajustar sobre
nossos rostos a máscara do sábio? Ela necessariamente desliza e cai.
"Mexemos" com filosofia? Certamente
não desejamos apenas ser professores, mas
também não queremos ser filósofos profissionais, como está na moda. Que é essa estranha figura contemporânea -o técnico
da filosofia- senão a réplica atual do filisteu, tal como a desenhou a crítica do século 19? Já no século 18 o sobrinho de Rameau punha em dificuldade o filósofo seguro de sua tarefa, revelando um mínimo
de obscuridade no coração das Luzes
triunfantes.
Kant e Nietzsche
Mas é com Kant e
Nietzsche -não se espante o leitor com
essa inesperada conexão- que entramos
em nossa atmosfera e descobrimos a raiz
de nossa instabilidade, de nossa insegurança, mas também da nova figura, senão
da verdade, da significação que nos envolve e emoldura. "Vermöge eines Vermögens", apenas uma tautologia? Seria Kant o
cômico personagem de Molière? Ao fim e
ao cabo, através de Nietzsche (e, talvez, a
despeito dele) Kant é recolocado, como é
justo e necessário, para além da alternativa
entre dogmatismo e ceticismo.
Mas, sobretudo, Kant é recolocado na
história de maneira diferente da indicada
nos manuais, que permite uma leitura original e seminal do idealismo e do romantismo alemães. E a inclusão do ensaio "Por
Que Estudamos?", que não estava presente
na primeira edição do livro, nos ajuda a
formular nossa pergunta principal, modificando levemente sua última frase, para
aproximá-la mais do primeiro verso dos
"Hinos à Noite": por que razão, ainda hoje
(no início do século 21), "deverá sempre
retornar o reino do Romantismo Alemão?". Pois é nesse horizonte que emerge
com toda sua força a questão: ""Isso" de ler
e escrever".
Questão lindamente examinada no cruzamento entre as filosofias de Fichte e
Schelling, que se opõem simetricamente
na descrição da leitura, como se opõem
"finden" e "erfinden", achar e inventar. É
assim, voltando ao "Dia da Caça", que podemos encontrar a raiz filosófica das duas
concepções inversas do que seja a leitura
em duas idéias diferentes da essência da liberdade. No caso de Fichte, uma liberdade
pura que permite instituir o saber em ruptura com o passado; em Schelling, uma liberdade que se completa na redescoberta e
na reconciliação com o passado.
Duas relações diferentes com a história
da filosofia que são duas relações diferentes com a linguagem. No caso de Fichte, o
texto, em sua objetividade, se reduz (como
será reduzida por Sartre) à materialidade
do signos que a liberdade do leitor precisa
reanimar e dotar de significação. No caso
de Schelling, o sentido do texto precede a
leitura na imanência de uma linguagem
por assim dizer pré-subjetiva (como a esfera da expressão precederá o "cogito" reflexivo para Merleau-Ponty).
Nem seria impossível fazer cruzar, de
maneira produtiva, essa hermenêutica
sem metafísica e sem teologia (ou essa filologosofia) com a contemporânea filosofia
da linguagem. Uma abordagem da linguagem despida de qualquer ambição reducionista ou fundacionista, cujo método se
resume ao imperativo wittgensteiniano de
"ler devagar" para poder (nada mais) descrever o "estilo" da produção da significação.
É assim, caro leitor, que, com o livro de
Rubens Rodrigues Torres Filho, dispomos
de uma entrada privilegiada para o universo da filosofia, livre dos preconceitos da
escola e da ideologia, a abertura de uma
via que, multiplicando os paradoxos para
melhor dissolvê-los, pode talvez permitir-nos voltar a ler, a escrever e a respirar livremente.
Bento Prado Jr. é filósofo, professor de filosofia na
Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor
emérito da USP. É autor de, entre outros, "Presença e
Campo Transcendental" (Edusp). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C.". O texto acima é o
prefácio do livro "Ensaios de Filosofia Ilustrada", a
ser publicado em setembro pela editora Iluminuras.
Texto Anterior: + autores: Energias em Cubatão Próximo Texto: + brasil 505 d. C.: O fundamento do trágico Índice
|