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Ponto de fuga
A marionete e o músico
Quem quiser conhecer a felicidade em música, ouça o
CD "Giuseppe di Stefano Unreleased Jewels", editado pela
Ried Records. São canções italianas interpretadas pelo tenor em estúdio e num recital ao vivo, logo depois da Segunda Guerra Mundial.
Di Stefano tinha então 25 anos. Era o início de uma carreira que o conduziria à fama lendária e à parceria com
Maria Callas, em gravações nunca superadas. Nesses primórdios, sua voz é um milagre de beleza, de presença, de
matizes infinitos. Calorosa, ela envolve o ouvinte como
que numa aura luminosa.
A primeira das canções no disco se intitula "La Serenata
del Buratino" (A Serenata da Marionete) e seu autor, diz o
encarte, é Francisco Mignone. Não há outra informação.
Que diabos seria essa obra? O piano, na breve introdução,
evoca a "Mattinata", de Leoncavallo; depois, a melodia se
desenrola como o "Apri la Tua Finestra", na "Iris", de
Mascagni.
O paulista Mignone passara vários anos na Itália. Lá,
compusera óperas e melodias em italiano. Mas "La Serenata del Buratino" não consta de seu catálogo. Consultados, alguns especialistas e a própria viúva do compositor
nada sabem dela. Existiriam outras composições ignoradas de Mignone na Itália? O velho tenor, que vive seus 83
anos perto de Milão, ao ser interrogado num telefonema,
responde: "Jamais interpretei música do maestro Mignone". "Mas o senhor gravou "La Serenata del Buratino!"
"Ah, essa, claro!"; e Di Stefano põe-se a cantá-la ao telefone. É uma comoção. Porém, não se lembra da partitura,
como não se recordava do compositor. Se encontrá-la nos
seus guardados, entrará em contato. Tomara.
Idolatrada - Vale a pena descobrir mais sobre "La Serenata del Buratino"? Claro que sim. Primeiro porque é linda, o
que seria já, de longe, motivo suficiente. Depois, porque
Mignone é um compositor essencial na música brasileira.
Mas há ainda outra razão. Os tempos do nacionalismo
moderno e autoritário foram, algumas vezes, cruéis para
com os músicos.
Em 1939, conta Flávio Silva no livro "Camargo Guarnieri
- O Tempo e a Música", Mário de Andrade comandava:
era preciso afastar Francisco Mignone da "insidiosa e
mortífera Iara internacional" e extirpar-lhe a "serenata italiana que lhe ressoava nas cordas das veias". O compositor, nascido e formado em São Paulo, num meio inteiramente italiano, obedecia a essas ordens, fazendo música
"brasileira" como mandavam. Muito bela, é verdade. Ele
diria mais tarde, meio desconsolado, em outro momento
de sua vida: "Amparado da cordial e espontânea amizade
de Mário de Andrade, embrenhei-me no cipoal da música
nacionalista e, também, para não ser considerado (...) uma
"reverendíssima besta" (...). Compus, compelido, "Quatro
Fantasias Brasileiras'".
A "Serenata", cantada por Di Stefano, devia, por esses
critérios, ser-lhe arrancada do sangue. Ficou esquecida na
Itália. Volta agora, como testemunho das pressões nacionalistas que moldaram, e às vezes ainda moldam, as artes
feitas no Brasil.
Batuta - Não tem jeito. Orquestras hoje podem ter atingido um nível técnico mais alto do que nunca. As leituras podem ser mais fielmente filológicas. Mas basta ouvir gravações deixadas por Toscanini para constatar a genialidade
única, feita de eletricidade e inteligência, que as põe no topo. Um disco, editado por Urania, traz versão inédita
(1945) do segundo ato de "Orfeu e Eurídice", de Gluck.
Pouco importa a orquestra moderna, os instrumentos
"que não são de época". Gluck está ali, com uma força que
nenhum outro intérprete alcançou.
Brasiliani - O CD editado por Urania e consagrado a Toscanini inclui também a "Fantasia Brasileira", de Francisco
Mignone (1943), com um Bernado Segal esplêndido, ao
piano. Há ainda o "Batuque" de Lorenzo Fernandes
(1940). O supremo maestro dirige a NBC Symphony Orchestra. Não é preciso insistir na importância histórica
desses registros. Com ótimo som, transcendem em energia tudo o que se possa imaginar.
No "Batuque", os metais parecem raios, fulgores, sobre o
tecido rítmico da orquestra.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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