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Ponto de fuga
A morena e as teclas
Revista "Óculum"/Reprodução
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Edifício no parque de la Villette em Paris, projetado pelo arquiteto francês Christian de Portzamparc |
Jorge Coli
especial para a Folha
Em 1909, Guiomar Novaes alcançou o primeiro lugar
no concurso de admissão para o Conservatório de Paris, frente a 331 candidatos. Isso provocou uma observação, meio entusiástica, meio desconsolada, de Debussy,
que fazia parte da banca e investia na formação dos jovens pianistas franceses. Numa carta, ele se refere à
"ironia habitual das coisas" que dispôs, como vencedora, "uma jovem brasileira de 13 anos".
Nesses tempos, o Conservatório de Paris era, para citar ainda Debussy, um lugar "sombrio e sujo". Dois
anos depois, foi para uma nova sede, onde ficaria até
1990. Instalado no novo edifício concebido por Christian de Portzamparc, é agora uma espécie de paraíso da
música: todos os dias são oferecidos, gratuitamente, recitais, concertos, balés e óperas.
No dia 17 de dezembro passado ali se apresentou Juliana Steinbach, pianista nascida em João Pessoa. Com
seus 23 anos, obteve o primeiro lugar, por unanimidade, para aceder ao ciclo de aperfeiçoamento do Conservatório. Em consequência, ganhou um piano de cauda,
prêmio da fundação Alfred Reinhold. Seu recital estreava o instrumento esplêndido. Juliana Steinbach foi para
a França com três anos de idade, mas guarda laços de
origens brasileiras. Tem uma beleza de morena trigueira e fala português com suave sotaque. A doçura encontra-se também no tom de voz, na elegância discreta dos
gestos, mas dá lugar, nas interpretações, a uma energia
poderosa.
Constelação - O programa escolhido por Juliana Steinbach, no recital de sua premiação, não evitou dificuldades: uma obra de Matan Porat [compositor israelense
nascido em 1982", cujas últimas páginas foram escritas
uma semana antes da apresentação; a segunda sonata
de Schumann; a temível "Sonata para Piano" de Bela
Bartók. O toque é encorpado, pessoal, e Juliana Steinbach possui uma verdadeira personalidade de intérprete, coisa tão rara em tempos de virtuoses impecáveis e
indiferentes. Seus olhos grandes são também "embriagados de música", para usar a expressão que Claude Debussy atribuiu à menina Guiomar Novaes.
Jardins: Numa das extremidades de Paris, no parque
de La Villette, onde ficavam os antigos matadouros, foi
construída a "Cidade da Música". O arquiteto Portzamparc dispôs, numa praça, frente a frente, o edifício do
Conservatório e o do Museu da Música, que compreende também uma grande sala de concertos. Ambos demonstram que a arquitetura contemporânea pode ser
outra coisa além de achados simples e autoritários.
François Mitterrand quis marcar seu mandato por
realizações arquiteturais meio faraônicas: a nova Biblioteca Nacional, o novo Louvre, a Ópera da Bastilha, a
"Arche de la Defense". A "Cidade da Música" é a mais
bem sucedida, exemplo de soluções atentas ao bem estar das pessoas, à escala humana, às questões técnicas.
No Conservatório, o arquiteto partiu de um problema
crucial para uma escola de música: o isolamento sonoro
das salas. Ele é de fato impressionante. Cada auditório
possui sua acústica distinta, e são, todos, excelentes. As
formas exteriores dos dois edifícios não se afirmam como signos nítidos; compõem, antes, vários volumes inseridos uns nos outros, sem que nenhum se afirme por
si só. Dentro, a circulação fluente permite renovar pontos de vista e percepções do espaço. Os ambientes apresentam uma diversidade não apenas formal, mas "sugestiva", por assim dizer, graças aos diferentes materiais, à luz e harmonia que se modificam. Por vezes, surgem alusões: assim, a sala do órgão retoma o tema clássico da cúpula, mas deslocando seu eixo, como se o interior do Panteão romano se inclinasse.
Flores - Os concertos e recitais apresentados pelo Conservatório de Paris indicam um interesse por obras
mais raras, vindas de horizontes diversos. No dia 13 de
dezembro, foi incluído o "Quinteto em Forma de Choros", de Heitor Villa-Lobos. A interpretação acentuou o
colorido dos instrumentos, num clima de melancolia e
malemolência.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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