São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura A União Européia precisa desvincular com urgência os conceitos de cidadania e identidade nacional se não quiser ver naufragar o sonho da integração Políticas modernas para ideais obsoletos
Julian Nida-Rümelin
Existe algo de trágico no atual desenvolvimento da Europa. A marcha da democracia através do continente e a formação de um mercado único abrangendo a maior parte da Europa criaram estabilidade, segurança
e prosperidade sem precedentes. A nova
moeda única, o euro, e a promessa de a
União Européia admitir até dez novos
membros em 2004 são indicadores poderosos da integração em curso.
No entanto a capacidade de as instituições européias se adaptarem a uma integração mais profunda e ampla é cada vez
mais minada pela persistência de um
ideal contraditório e muito obsoleto: o
Estado-nação como base de legitimidade
e soberania políticas. É principalmente
pelo fato de a idéia de cidadania comum
européia ser muitas vezes entendida em
analogia à de cidadania nacional que a
maior integração européia provoca tanto medo e oposição.
Observe-se, por exemplo, o veto da Irlanda às reformas institucionais adotadas na Cúpula de Nice da União Européia em dezembro de 2000 -reformas sem as quais a ampliação não pode avançar. De modo semelhante, pesquisas de opinião mostram que o apoio ao ingresso na UE diminuiu rapidamente, mesmo em muitos países candidatos. Líderes políticos como Vaclav Klaus, na República Tcheca, e Viktor Orban, na Hungria, aprovam o mercado comum, mas afirmam que seus Estados-nações não recuperaram de facto sua soberania de Moscou para entregá-la a Bruxelas. No entanto a livre circulação de bens e serviços, trabalho, capital e idéias (as "quatro liberdades" do mercado único) torna irrelevante boa parte do que fazem os Estados-nações europeus tradicionais, isto é, a defesa dessas liberdades dentro de um território menor. Com as fronteiras internas da UE reduzidas a limites meramente administrativos, essa tarefa passou para instituições que detêm uma imensa autoridade preceptiva sobre os países membros. Portanto, deve-se encontrar uma alternativa para uma definição de cidadania que considere essas instituições apenas uma espécie de representação formalizada do desejo político comum dos países membros. Cidadania comum Qual seria o aspecto de uma concepção alternativa de cidadania européia? O modelo americano de identidade política, moldado por um legado de imigração e integração cultural voluntária, não pode ser simplesmente transposto para a Europa, onde tradições, culturas e atitudes diferentes estão profundamente entrincheiradas. Mas um conceito de cidadania que seja básico e mínimo é essencial quando um polonês e uma sueca podem se apaixonar enquanto estudam na Espanha, iniciar suas carreiras na Alemanha e se radicar para formar família na Itália. A cidadania comum não exige uma forma de vida comum, valores existenciais comuns ou um passado histórico comum. Na verdade, essa é a única definição democrática e estável de cidadania européia, porque somente ela é capaz de gerar o consentimento e a fidelidade de cada indivíduo. Evidentemente as pessoas no mundo real não têm a possibilidade de escolher a estrutura básica de sua sociedade. Mas imagine, no espírito da famosa experiência de pensamento do filósofo John Rawls em seu livro "Uma Teoria da Justiça" (ed. Martins Fontes), que você possa escolher as regras mesmo sem saber quem será nessa sociedade hipotética. Supondo que você seja racional, deve calcular que poderá ser um membro de uma minoria cultural. Obviamente, não escolherá regras que definam a cidadania em termos de uma identidade cultural em particular. Pelo contrário, tentará aumentar suas probabilidades garantindo que a cidadania seja constituída por direitos individuais de participação em projetos coletivos, apoiada por um sistema legal que garanta esses direitos. A cidadania, nesse sentido, vê a soberania e a legitimidade políticas como características de instituições que promovem a cooperação social voluntária, ao incluir regras de interação que são consideradas justas e eficazes da perspectiva de cada um. Se a repressão bastasse para garantir a aceitação dessas regras, a legitimidade democrática não seria importante. Como demonstrou o colapso do comunismo na Europa Oriental, a repressão em si é uma fraca garantia de estabilidade. Consenso normativo A cidadania européia entendida dessa maneira é compatível com um grande número de identidades coletivas, variando de grupos familiares e de amizade a associações profissionais e corporações, comunidades definidas regionalmente e afinidades culturais, políticas e religiosas comuns. Essa concepção estabiliza a cooperação social dentro da Europa porque reflete um consenso normativo básico sobre o modelo das instituições e, assim, orienta o comportamento individual para a preservação dessas instituições. De fato, uma concepção bem desenvolvida de cidadania democrática sempre enfatizará os direitos individuais. A cidadania não é constituída por grupos, mas por indivíduos interagindo como cidadãos com interesses e objetivos específicos. Isso significa que eles perseguem seus interesses e objetivos dentro de regras comumente aceitas de interação, incluindo, naturalmente, regras de solução de conflitos entre diferentes identidades coletivas. Julian Nida-Rümelin é professor de filosofia na Universidade de Göttingen e ex-ministro de Assuntos Culturais e Mídia da Alemanha. Copyright: "Project Syndicate". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves. Texto Anterior: Et + cetera Próximo Texto: O Brasil mítico de Marinetti Índice |
|