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+ cultura
Reunindo três DVDs com filmes de Yasuzo Masumura, Masahiro Shinoda e Yasujiro
Ozu, caixa apresenta um panorama privilegiado da modernidade no cinema
Urros de uma loucura interessante
Lúcia Nagib
especial para a Folha
O Japão é um campo privilegiado
para pensar o moderno no cinema. Três filmes de figuras diversas como Yasuzo Masumura,
Masahiro Shinoda e Yasujiro Ozu, reunidos na caixa de DVDs "Um Olhar Japonês"
recém-lançada pela Magnus Opus [tel. 0/
xx/11/5051-8817], são a prova da variedade
de recursos narrativos modernos que o cinema japonês desenvolveu entre os anos
50 e 60 e, ao mesmo tempo, do grau de reciclagem que se opera entre as gerações recentes. Masumura, normalmente excluído
da lista dos grandes nomes da nouvelle vague japonesa, como Oshima, Shinoda,
Imamura e Yoshida, tem contra si apenas o
fato de ter se iniciado na Daiei, e não na
Shochiku, como seus colegas, e não ter optado, a seguir, como eles, pela via independente. Mas em muitos sentidos foi precursor deles todos, ao ir procurar na Europa
novas técnicas narrativas e rejeitar o bom-mocismo típico do cinema do pós-guerra
no Japão. Já em meados dos anos 50, as ousadias de Masumura nos campos político e
erótico, cujas fontes vão desde o tcheco
Machaty ao francês Malle, certamente
abriram caminho para o radicalismo de
Oshima nos anos 60 e 70.
"Quero exprimir as sensações humanas,
a raiva e a felicidade, do modo mais livre
possível... Quero que os japoneses possam
urrar, até parecerem loucos, as coisas interessantíssimas que escondem no fundo do
coração", escreveu Masumura em 1958,
quando dirigia os primeiros de seus mais
de 60 filmes. "Cega Obsessão" ("Moju",
1969), sua obra agora lançada em DVD, é
esse urro de "loucura interessante". Baseado numa novela de Edogawa Rampo (o introdutor do conto policial no Japão, cujo
nome é a pronúncia japonesa de Edgar
Allan Poe), dá expressão ao universo interior de um escultor cego, que inventa uma
arte inteiramente tátil.
Seu estúdio se compõe de paredes cobertas de partes humanas de gesso, grandes
olhos, seios, pernas, braços, narizes, em
composições fascinantes do cenógrafo Shigeo Mano. Para ali o cego atrai uma modelo e, vencida a resistência dela, ambos se
entregam a um delírio de sensações carnais que, previsivelmente, termina numa
orgia de corpos despedaçados.
Qualquer semelhança com o grafismo
corrente de um Takashi Miike não é mera
coincidência: os ecos de Masumura, morto
em 1986, continuam repercutindo no Japão, ainda que, infelizmente, para evidenciar a carência de senso estético nas produções contemporâneas. Para Masumura, os
excessos de amor devem ser, antes de tudo,
belos, mesmo quando incluem a sujeira e o
sangue. Consciente dos códigos que manipula, ele desde logo se livra de possíveis
corretivos psicanalíticos, explicitando a
paixão edipiana entre a mãe e o filho cego,
para a seguir mergulhar os três, mãe, filho
e amante, nos abismos das sensações físicas puras, onde tudo é permitido.
O moderno na tradição
No mesmo
ano de 1969, outra experiência radical foi
realizada por Masahiro Shinoda, em "Duplo Suicídio em Amijima" ("Shinju Ten no
Amijima"), um dos mais extraordinários
filmes japoneses já feitos. Aqui, Shinoda
desentranhou o moderno não de sentimentos individuais, mas da tradição japonesa, buscando seu tema na peça de bunraku (teatro de bonecos) do clássico Monzaemon Chikamatsu (1653-1725). Contou
para isso com a ajuda do célebre compositor Toru Takemitsu, que se encarregou
não apenas da música, mas da orquestração de todos os ruídos e diálogos do filme.
Takemitsu foi ainda o responsável pelo
roteiro, apenas retocado por Taeko Tomioka, especialista no dialeto de Kansai,
onde a história se passa. O trabalho meticuloso do compositor é fundamental para
o efeito reflexivo que define o filme, derivado tanto de Brecht quanto da estrutura do
bunraku, que exibe seus manipuladores
durante o espetáculo.
Seguindo sugestão de Takemitsu, o filme
começa com uma trupe de manipuladores
nos bastidores de um teatro, treinando os
movimentos dos bonecos, enquanto ouvimos uma conversa telefônica entre Shinoda e Tomioka, definindo as externas para a
sequência final do duplo suicídio. A partir
daí, os personagens (de carne e osso) são
conduzidos aos seus locais de representação por esses manipuladores vestidos de
preto, que freqüentemente os colocam sobre platôs cobertos de caligrafia, como se
eles brotassem das páginas de um livro.
Tudo no filme emana originalidade: os
sons do gamelão da Indonésia marcando
as mudanças de cena; a sobreposição das
pontes que reproduzem o "michiyuki"
(caminho da morte) do kabuki; o surpreendente uso da mesma atriz, Iwashita
Shima, mulher de Shinoda, para representar tanto Osan, a mulher do comerciante
falido Jihei, quanto sua amante, a cortesã
Koharu; as portas de correr gradeadas que
aprisionam os personagens nas duras leis
do dever, ou "giri", tornando-os, ao mesmo tempo, objeto de permanente voyeurismo; as cenas de sexo tanto mais contagiantes quanto mais estilizadas; e, afinal, o
duplo suicídio de Jihei e Koharu, encenado
como um desesperado balé de libertação.
O banal da vida
Tudo aqui é incomum e por isso oposto ao terceiro filme da
caixa, "Bom Dia", rodado em 1959 pelo
mestre Yasujiro Ozu, no qual o assunto é
exatamente a banalidade da vida cotidiana.
A obra de Ozu é aquela em que jamais se
encontrarão suicídios de amor ou membros decepados. "Bom Dia", feito poucos
anos antes de sua morte, em 1963, é o testemunho definitivo dessa postura, reafirmando a ociosidade de frases como "bom
dia", "o tempo está bom", "até logo" etc.,
mas também a absoluta necessidade delas
para preencher o vazio dos sentimentos
extremos que, entre pessoas comuns, jamais encontram expressão.
Sem incluir-se entre suas obras-primas,
"Bom Dia" talvez seja o filme mais auto-reflexivo de Ozu, um testamento no qual o
diretor tenta explicar a razão de ter contado quase sempre a mesma história em seus
filmes. Adotando a perspectiva das crianças, inconformadas com a inutilidade do
discurso adulto e tomadas do desejo consumista introduzido pela modernização
do pós-guerra, Ozu coloca seu próprio cinema diante da nova ameaça: a televisão.
Pais assalariados, esmagados por uma
competição cruel, afinal são forçados pelos
filhos a gastar seus parcos recursos num
aparelho de TV. Se isso resulta numa certa
nostalgia de um país e um cinema que se
perdem, esta logo se quebra no humor,
desta vez bastante ousado para um filme de
Ozu: um concurso de peidos entre as crianças rebeldes, que ingerem pedras-pomes
para esse fim.
Rejeitado pela geração de Masumura e
Shinoda por seu classicismo, Ozu afinal se
une à modernidade deles justamente pela
auto-ironia e a consciência dos limites de
sua arte.
Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade
Estadual de Campinas e autora de "O Cinema da Retomada" (ed. 34) e "Nascido das Cinzas" (Edusp).
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