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+ autores
Destinos trágicos
Sentimento de evasão no tempo em relação
a fatos centrais
em suas vidas, como a Primeira Guerra, marcou obras do húngaro
Sándor Márai
e do austríaco Joseph Roth
Peter Burke
O destino de escritores e seus livros é tão imprevisível quanto
o de generais ou políticos. Enquanto alguns se tornam famosos em seu próprio tempo e são esquecidos logo depois, outros são ignorados
por seus contemporâneos e descobertos
pela posteridade. O sociólogo centro-europeu Norbert Elias (1897-1990), cuja
obra-prima foi "O Processo Civilizador"
(1939; publicado no Brasil pela ed. Jorge
Zahar), viveu na Inglaterra em relativa
obscuridade até se aposentar, e apenas
sua longevidade lhe permitiu acompanhar a descoberta e o reconhecimento
internacional de sua obra nas décadas de
1970 e 1980. Mais incomum foi o que
aconteceu ao contemporâneo de Elias
que foi o escritor centro-europeu Sándor
Márai (1900-89).
Jornalista e romancista, Márai foi um
dos escritores mais bem-sucedidos da
Hungria nos anos 1930 e 1940, autor de
"Confessions of a Bourgeois" (Confissões de um Burguês, 1934-5), "Conversation in Bolzano" (Conversa em Bolzano,
1940), "Divórcio em Buda" (1935) e "As
Brasas" (1942) [estes dois últimos publicados no Brasil pela Cia. das Letras, que
também deve lançar do mesmo autor,
em setembro, "Rebeldes" e, em maio de
2005, "Confissões de um Burguês"]. Ele
se opôs ao regime comunista imposto à
Hungria após a Segunda Guerra Mundial e, em 1948, deixou o país.
Após seu exílio, os livros de Márai foram proibidos na Hungria. É difícil para
um estrangeiro, especialmente para um
cujo idioma nativo seja uma língua mundial, imaginar o que essa proibição significou para Márai. Sua leitura foi proibida
em seu próprio país. Fora de seu país nativo, ele só poderia ser lido pelas muito
poucas pessoas fluentes em húngaro.
Não chega a surpreender que Márai tenha publicado tão pouco depois disso.
Ele se suicidou em 1989, na Califórnia,
pouco antes de sua descoberta ou redescoberta na Europa. Seis de seus romances podem ser encontrados em francês,
alemão e italiano e alguns em português,
embora, curiosamente, apenas um tenha
sido traduzido para o inglês.
Para que lemos Márai agora? Ele é um
clássico esquecido, um escritor de talento que, diferentemente de alguns membros mais famosos de sua geração, era
relativamente pouco interessado na inovação formal, na experimentação literária. Suas obras levam adiante a tradição
do romance realista do século 19. Tenho
poucas dúvidas que o relançamento de
seus livros se deve em parte à queda do
Muro de Berlim no ano de sua morte e às
transformações políticas que se seguiram a ela na Hungria e em outros países,
um clima de restauração no qual os vínculos com o passado pré-comunista da
Europa Central passaram a ser valorizados. No entanto seus romances devem
ser lidos por seus méritos literários próprios e também pela evocação vívida que
fazem de lugares e pessoas no império
habsburgo.
A chave da obra de Márai certamente é
seu romance semi-autobiográfico "Confissões de um Burguês". O livro começa
com uma belíssima descrição da infância
passada em Kassa, pequena cidade de
província na qual a família do narrador
era dona de uma das maiores casas, cidade de fronteira na qual a primeira língua
de algumas pessoas era o eslovaco e, de
outras, o húngaro. Os criados frequentemente falavam um misto das duas línguas, e os burgueses, depois do jantar,
quando estavam em mangas de camisa,
falavam o alemão, o idioma culto.
Márai começa o livro evocando a casa e
sua mobília como uma criança os teria
visto, além dos rituais cotidianos, como
o café da manhã, depois passa a descrever os membros de sua família e, finalmente, o resto da cidade e as florestas vizinhas, antes de seu protagonista deixar
Kassa para conhecer o mundo maior de
Leipzig, Paris e Budapeste. O narrador
ganha a vida como jornalista, escrevendo uma coluna diária para o jornal sobre
qualquer tópico que escolher (uma liberdade de que também gozo aqui no
Mais!), e faz uma série de observações
interessantes sobre a maneira como procurou encontrar o universal na descrição
do particular, o geral nos detalhes.
Como "As Brasas" ou "Divórcio em
Buda", "Confissões" é maravilhosamente vívido. No entanto o que mais me impressionou, depois de eu ter terminado o
livro, é o que não está ali. O livro descreve
a vida do narrador de 1900, mais ou menos, até o início dos anos 1930. Naquele
período, o narrador -e o autor- passaram pela Primeira Guerra Mundial e o
colapso do Império Austro-Húngaro.
Depois de 1919, Kassa se tornou Kosice,
parte de um país novo, a Tchecoslováquia. Na Hungria, houve uma guerra civil e, em 1919, a breve criação de um Estado comunista sob a direção de Béla Kun.
O governo Kun foi derrubado pelo almirante Horthy, que o substituiu por um
regime conservador, autoritário e fascista. "Confissões" faz não mais do que breves e rápidas referências a todos esses
acontecimentos, por traumáticos que
devam ter sido. Sem dúvida, na década
de 1930 ainda eram dolorosos demais
para que se pudesse escrever ou mesmo
ler sobre eles. Contrastando com isso, a
descrição do mundo anterior a 1914 deve
ter sido uma espécie de escape para Márai e seus leitores e também uma forma
de terapia. Ironicamente, quando publicou o livro o autor não fazia idéia, não
mais do que fazia o herói de qualquer
tragédia grega, do que o destino ainda
guardava para ele e seus conterrâneos
húngaros -mais uma guerra mundial, a
imposição de outro regime autoritário
(dessa vez, mais comunista que fascista)
e, para o próprio Márai, 40 anos de exílio.
Ao ler "Confissões", me veio à mente
mais de uma vez outro romance centro-europeu ambientado no império habsburgo e publicado dois anos antes do livro de Márai, "Radetzky March" (1932),
de Joseph Roth. À diferença de Márai,
Roth era judeu, mas também foi jornalista e viveu na Alemanha, tendo se mudado para a França após a chegada de Hitler ao poder e tendo cometido suicídio
em 1939. Ambos começam nas pequenas
cidades de província em que seus respectivos autores passaram suas infâncias e
ambos giram em torno da família.
No caso de Roth, é a família Trotta, formada por autoridades e oficiais do Exército que servem ao regime do imperador
Franz Josef. Ambos os livros utilizam a
família como porta de entrada para a cultura e sociedade da Europa Central nos
anos imediatamente anteriores a 1914.
Ambos os autores são observadores meticulosos dos rituais dos grupos sociais
que escolheram para descrever (como se
alimentavam, as visitas a bordéis etc.) e,
de maneira apropriada àquele império
multilíngue, ambos são sensíveis ao status social das diferentes línguas. No início de "Radetzky March", por exemplo, a
família fala entre si em esloveno, mas,
quando o tenente Trotta é promovido a
capitão, depois de salvar a vida do imperador, seu pai comemora a ocasião falando com ele em alemão. Para mim, entretanto, o paralelo mais impressionante
entre os dois livros está na atitude semelhante de seus autores em relação ao
tempo.
Eles escrevem sobre a sociedade do império habsburgo de maneira crítica e
nostálgica, como se fosse um velho regime que havia ficado no passado distante.
Na realidade, Roth tinha 17 anos e, Márai, 14, em 1914, e, quando publicaram
seus dois livros, pouco mais de 20 anos
tinham se passado desde o final da Primeira Guerra. Em ambos os livros, esse
período é sentido como se tivesse sido
um século. Esse senso de distância constitui um lembrete poderoso de que o
tempo não se move de maneira constante, mas em velocidades muito diferentes,
e que em uma década podem ocorrer
transformações sociais e culturais maiores do que nos cem anos anteriores. O
destino das sociedades, além dos indivíduos, freqüentemente é inesperado, às
vezes trágico.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma
História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar
Editor). Escreve regularmente na seção "Autores",
do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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