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Volume traz reunião de textos do historiador da
arte Jorge Coli publicados no Mais! entre 1998 e 2000
Políticas do ponto de fuga
Teixeira Coelho
especial para a Folha
Gosto da forma breve. Nunca tive livro de cabeceira, mas sempre recorro às alusões rápidas
de Valéry. Ou às reflexões mínimas de Wittgenstein sobre cultura. E às
curtas proposições de Nietzsche sobre
tudo. Não chamo de aforismos a esses
textos enxutos porque nem todos quiseram ser "sentenças morais breves e concisas". Talvez nenhum. Detesto sentenças morais. Na forma breve vejo tentativas fulgurantes de apossar-se do próprio
pensamento. Não são condensações do
conhecimento do autor: são iluminações, haikus teóricos, "fósforos inesperadamente riscados no escuro" (Virginia
Woolf). O que há de instigante no trabalho intelectual.
Por isso recebo bem, desde logo, "Ponto de Fuga". Seus textos, bem mais extensos que os de Valéry ou Wittgenstein, são
microensaios. Mas o essencial que procuro está lá: uma sugestão criativa aqui,
ali um juízo cortante, sem justificativas, e
a natureza de uma obra se revela em fratura exposta. Publicados no Mais! entre
1998 e 2000, tratam de tudo que se move
em cultura: ópera, música erudita, cinema popular, literatura, artes. Talvez só a
destinação inicial -coluna de jornal-
permita a audácia de se abordar tudo que
é cultural: ninguém pensaria em escrever um livro nessa perspectiva. Ótimo,
porém, que tenham agora saído em livro:
ganham outra dimensão, abrem espaço
para uma imagem mais ampla do autor e
do que escreve.
Imposições
Há, no volume, belos
textos que envolvem o leitor em delicada
sensação ao final da última frase -como
"Branco", ao redor de Nova York, do impressionismo e do clima. E outros em
que o autor se revela impiedoso crítico:
em "Kitsch", demole uma exposição de
Sérgio Ferro e, em "Mistificação", recusa
Di Cavalcanti in limine. Em "Idolatrada,
Salve, Salve!", repele, curto e grosso, um
edital federal que em 1999, durante o governo FHC, estipulava temas obrigatórios para curtas-metragens que quisessem dinheiro oficial (coisa diferente de
dinheiro público, digo eu): tinham de falar dos 500 anos do Descobrimento do
Brasil, de cultura popular, das culturas
regionais. Um texto que, com a defesa
por Coli feita de "Cronicamente Inviável", de Sergio Bianchi, muitos hoje em
Brasília deveriam ler nestes dois anos de
uma ideologia cultural que insiste em repetir o Estado Novo de Getúlio.
O tom é pessoal, e isso é um ponto forte. Coli explica uma das regras auto-impostas para escrever a coluna: nunca
usar a primeira pessoa do singular. Regra inútil, porque violada o tempo todo:
talvez não haja no livro nenhum "eu"
formal, mas nem por isso fica eliminada
a intensa subjetividade do autor. Antes
assim.
Essa é sua regra sobre como escrever.
Sobre o que escreve? Onde está seu ponto
de fuga? Um rápido exame do índice
onomástico mostra a trilha de incidências. O nome mais presente aparece nove
vezes: Hitchcock. Oito menções para Kubrick, Clint Eastwood e Beethoven (essa
mescla é bem a cultura, hoje). Sete para
Mário de Andrade e Manuel Bandeira.
Almodóvar, quatro. Pessoa e Pasolini,
três. Godard, uma. A insistência do cinema não será ocasional. Na peça "Luto",
Coli diz que pelo menos nos últimos 50
anos o cinema se mostrou mais criador
que as outras artes e mais reflexivo que
muita teoria. Estou pronto para concordar que entre as maiores obras-primas
do século 20 aparecem alguns filmes.
Mais Godard, menos Kubrick
Mas, com Peter Greenaway (quatro citações), num juízo de valor que não está
neste livro, acho o cinema demasiado
conservador (e vulgar, acrescento eu),
ainda ilustrando o romance do século 19,
nem chegando ao do século 20 (salvo exceções), nem sonhando ainda com Joyce, o cubismo. Talvez o cinema não tenha de passar por aí, é verdade. De todo
modo, Kubrick me parece largamente
superestimado, para não falar de Eastwood. A Hitchcock vejo como mito: apenas um mito ou todo um mito: e mitos
não são para levar muito a sério. Isso para dizer que eu teria preferido mais Godard e menos cinema americano.
Mas esse é apenas um ponto na reta de
fuga de Coli -um feixe, não uma reta-,
e essa divergência é irrelevante diante do
modo como ele cobre um vasto panorama, feito de Corman e Wolfflin, Zeffirelli
e Webner, Xuxa e Delacroix, Kiefer e
Goeldi. Tudo que se move na cultura,
quer dizer, tudo que é contemporâneo
(toda a arte o é, para mim; o mesmo não
digo da cultura), aparece no livro via comentários que sempre fazem pensar. E
aparece na justa proporção geopolítica:
um nome "nacional" para cada sete "de
fora" (número até generoso com o "nacional": inevitável). Um ponto de fuga
feito de erudição, porém erudição viva. A
amplitude do leque multiplicará as discordâncias com os leitores: também inevitável. Cada um, porém, dele retirará
sua cota de motivação.
Polimorfa e poliperversa
Há certa
homologia entre a cultura contemporânea, fragmentada, polimorfa, felizmente
polifônica, quando não poliperversa, e
este livro, em cujo ponto de fuga o autor
pode escapar de si mesmo tanto quanto
de seus temas, e, estes, dele. Mas é esse
traço pós-moderno (Coli não concordará com esse rótulo, talvez) que me atrai: a
época dos tratados redutores se esgotou,
resta agora navegar a miríade de correntes disparatadas e conflitantes, como
aqui. Afinal, isso é a tal diversidade cultural, que só assim interessa, e não quando
vem nos recortes-refúgio monomaníacos do nacional, do popular, do étnico
ou, na outra face, apenas do estrangeiro,
do erudito, do global. E pôr tudo isso
num ponto de fuga é a melhor política.
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e professor titular da Escola de Comunicação e Artes da USP. É
autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais"
e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras).
Lançamento
O livro "Ponto de Fuga" será lançado no dia
23, às 18h30, na livraria Cultura (av. Paulista,
2.073, SP, tel. 0/xx/11/3170-4033).
Ponto de Fuga
350 págs., R$ 38,00
de Jorge Coli. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro
Luís Antônio, 3.025, São Paulo, SP, CEP 01401-000, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).
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