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Oralidade nos bancos da academia
Peter Burke
Universidades são geralmente
associadas a livros e ao ato de
escrever, seja à mão, datilografado ou digitado no computador. De qualquer forma, as universidades, assim como o mundo do aprendizado em geral -institutos de pesquisa,
grupos de estudo, conferências acadêmicas-, são lugares de intensa oralidade,
onde ocorrem palestras, seminários, debates, comitês, conversas durante o cafezinho ou o almoço, encontros nos corredores. Por isso, foi excelente a idéia da
francesa Françoise Waquet, autora de
um livro muito aclamado sobre a história do latim ["O Latim ou o Império de
um Signo"], de pesquisar o lugar do discurso no mundo do aprendizado no período entre o século 16 e o presente. Seu
estudo, "Parler comme un Livre" ("Falar
como um Livro", ed. Albin Michel), é
uma leitura fascinante.
Os historiadores tenderam a associar o
modo de comunicação oral às sociedades primitivas e à cultura popular. Os intelectuais deixaram de estudar as suas
próprias formas de falar -ou o que pode ser chamado de "oralidade acadêmica". Tal estudo pode ter um valor prático, bem como um interesse histórico.
Ter em mente o fato de que as palestras
foram inventadas na universidade medieval porque os livros, escritos em pergaminho, eram extremamente caros pode incentivar os professores a pensar nos
objetivos de suas palestras hoje, na era
do xerox e da internet.
Guias
Pode-se ter acreditado que o
mundo oral do passado tivesse desaparecido para sempre sem deixar nenhum
vestígio, pelo menos antes do advento do
gravador, mas é possível reconstruir essa
oralidade ou partes dela com base em
cartas, anotações de estudantes, estatutos universitários, estudos biográficos,
descrições feitas por viajantes e introduções ao mundo acadêmico que vão desde
a obra "Polyhistor" (1688), do estudioso
alemão Daniel Morhof, até publicações
recentes, tais como o "Guia do Cientista
para Apresentações de Cartazes" (1999).
Há relativamente pouco a dizer a respeito dos séculos anteriores a 1800 pelo
fato de que as fontes, com raras exceções,
fornecem poucas informações sobre o
estilo oral das palestras, dos debates, ou
das sessões de academias eruditas
-apesar de uma carta maravilhosamente vívida escrita em 1766 por um italiano que visitou a Academia Francesa
de Ciências descrever os acadêmicos lendo seus relatórios em voz alta "com uma
voz nasal e irritante" enquanto a audiência dormia. Considerando que os sermões geralmente duravam duas horas
ou mais naquele tempo, aparentemente
sem cansar a audiência ou parte dela, seria interessante saber se os palestrantes
das universidades poderiam esperar a
mesma atenção por parte de seus alunos.
Provavelmente, não.
Foi somente no século 19 que as fontes
passaram a fornecer regularmente o tipo
de detalhes que estamos procurando.
Eles nos permitem distinguir entre uma
variedade de gêneros orais praticados
em locais acadêmicos, incluindo o seminário, inventado na Alemanha no século
19, o congresso internacional, que foi
criado no final do século 19 e cuja amplitude e frequência se tornaram cada vez
maiores desde então; a pequena conferência, idealizada nos anos 1930 como
uma solução para a falta de comunicação
nos grandes congressos, e a chamada
"sessão cartaz", uma invenção da década
de 1970 em que um aluno ou um erudito
fica em pé ao lado de um cartaz que resume sua pesquisa, esperando encontrar
pessoas com interesses semelhantes e
responder às perguntas delas. Outro gênero acadêmico, mais ou menos restrito
a Oxford e Cambridge, é o "tutorial",
uma sessão de uma hora semanal em
que um ou dois alunos, confortavelmente sentados em poltronas ou sofás, discutem um tema sobre o qual os estudantes
escreveram pequenas dissertações.
Waquet descreve e analisa esses diferentes gêneros orais atentando para os
diferentes estilos de desempenho e as diferentes formas de sociabilidade. Ela cita,
por exemplo, a frequência na qual os trabalhadores em um laboratório ou os participantes de uma conferência distinguem entre ocasiões formais e informais,
dizendo que o aprendizado é maior a
partir de conversas casuais e espontâneas travadas nos corredores ou durante
o cafezinho. Ela também faz a distinção
entre a palestra mais hierárquica, com o
orador em pé em uma tribuna (ou sentado em uma espécie de trono, como fiquei
certa vez na Universidade de Catânia), e
os seminários mais igualitários, com
mais espaço para o debate. Por essa razão o antropólogo francês Marcel Mauss
se recusou a falar em um anfiteatro, preferindo uma sala onde pudesse sentar-se
ao redor de uma mesa com os estudantes, enquanto a antropóloga americana
Margaret Mead recomendou o uso de
uma mesa redonda, para criar um clima
que incentivasse o debate.
Expulso por desatenção
Há ainda
muito a ser dito sobre os estilos individuais de desempenho oral, analisados
por Waquet no caso do grande historiador francês Jules Michelet, que gostava
de pensar em voz alta em vez de apresentar um discurso totalmente preparado.
Em Oxford, onde estudei, o filósofo Gilbert Ryle falava devagar, mas não era para nos ajudar a tomar notas. Ao contrário, ele nos disse que, se pegasse alguém
tomando notas, iria expulsá-lo "por desatenção". Ele queria que a audiência se
concentrasse no desenvolvimento de seu
pensamento. Sir Isaiah Berlin, por sua
vez, não proibia as anotações. Ele não
precisava fazê-lo, uma vez que falava tão
rápido que era difícil acompanhar o que
ele estava dizendo e praticamente impossível anotar qualquer coisa. Eu costumava sonhar em gravar as palestras e ouvir as fitas na metade da velocidade.
Outro tema que merece ser analisado
mais extensamente é o estilo ou estilos
das provas orais, ainda conhecidas na Inglaterra como "vivas", porque o candidato é avaliado "pela viva voz". Na Inglaterra, essa prova oral é meramente um
complemento para os trabalhos escritos.
Na Rússia do século 19, por outro lado,
era a única forma de avaliação. Tolstói
fez um relato vívido de uma prova de história sob esse sistema em sua autobiografia ficcional -ou ficção autobiográfica-, "Juventude", descrevendo os professores sentados a uma mesa "embaralhando as tiras de papel com as perguntas como se fossem cartas de baralho" e
chamando um por um os candidatos.
A diferença entre estilos nacionais de
oralidade erudita é outro tema que pode
ser futuramente abordado com detalhes
e profundidade. Existem as culturas nas
quais é comum ler em voz alta em um
tom baixo e monocórdio a partir de um
texto escrito, com olhadelas ocasionais
para conferir se a audiência está acompanhando, e as culturas nas quais pode-se esperar um desempenho teatral, com
contato visual com a audiência, mudanças frequentes de tom e apenas uma
olhada ocasional no texto, se houver um.
Há também a questão das diferentes
atitudes em relação ao tempo. Uma das
mais frequentes causas de desentendimento em conferências internacionais
diz respeito à extensão permissível de
uma contribuição individual. "Meia hora" não tem o mesmo significado para
um italiano, por exemplo, ou para um
sueco. Há também um contraste óbvio
entre os seminários alemães, mais formais e hierárquicos, e os americanos, em
que as pessoas se sentam em qualquer
lugar e dizem o que querem independentemente da hierarquia.
Cochicho
O papel da audiência também é desempenhado de diferentes formas em diferentes lugares. Em alguns
países, incluindo a Inglaterra, cochichar
no ouvido do vizinho que está lendo jornal ou virar as costas para o orador durante uma palestra ou uma conferência é
considerado ultrajante, mas em outros
lugares -como na Itália,- isso é virtualmente aceito. Em minhas palestras
em Cambridge, digo às pessoas da audiência que elas terão a oportunidade de
fazer perguntas no final. Quando chega a
hora, há geralmente um momento de silêncio, porque os estudantes britânicos
relutam em fazer a primeira pergunta.
Minha esperança é de que haja algum
italiano ou americano para quebrar o gelo. Quando faço palestras no Brasil, por
outro lado, não é necessário incentivar as
intervenções. Elas acontecem o tempo
todo, e as contribuições do público são
ao mesmo tempo mais longas e têm um
tom mais pessoal do que aquelas a que
estou acostumado no meu país.
Em outras palavras, a geografia da oralidade acadêmica tem um contorno evidente, bem como sua sociologia ou antropologia. Sua história, no entanto, é
mais difícil de ser definida. Françoise
Waquet mostrou o caminho. Quem irá
seguir o exemplo dela?
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma
História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar
Editor). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Leslie Benzakein.
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