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+ cinema
O crítico italiano, que falará em SP no próximo dia 25, discute a Grécia
"bárbara" criada por Pasolini e a herança contraditória de seus filmes
O herege santificado
Susana Kampff Lages
especial para a Folha
Massimo Fusillo é helenista de formação e
professor de literatura comparada da Università dell'Aquila (Itália). Estudioso não
apenas da literatura antiga, mas também
de temas que envolvem a permanência da Antiguidade
clássica na literatura e na arte da modernidade, o trabalho de Fusillo se destaca pela ampla erudição e pela extraordinária capacidade de reler em chave contemporânea temas e textos antigos.
Vai nesse sentido atualizador a leitura que ele faz do
cinema de Pier Paolo Pasolini (1922-75). Para Fusillo,
Pasolini constrói na sua filmografia uma "Grécia bárbara", despojada de toda frieza racionalista ou contenção
neoclássica -uma Grécia mítica, mágica, passional.
Autor de "La Grecia secondo Pasolini" e "L'Altro e lo
Stesso - Teoria e Storia del Doppio" (ambos pela ed. La
Nuova Italia), Fusillo participará de debate no próximo
dia 25, em local e hora ainda não definidos, a convite da Mostra Internacional
de Cinema de São Paulo, que exibirá retrospectiva do cineasta (mais informações no site www.mostra.org).
Pode-se dizer que Pasolini busca, por uma
metamorfose do texto literário, refazer as
próprias origens narrativas do cinema?
Seria a busca das origens um/o grande tema pasoliniano?
Mesmo levando em conta o caráter poliédrico de temas e de linguagens por ele utilizados, a busca das
origens é certamente um grande tema de Pasolini,
sobretudo se se entende por origem uma sacralidade
e uma poeticidade inerente às próprias coisas. Nos
filmes sobre o mito, Pasolini procura remontar às
origens rituais da tragédia grega, antes da intervenção racionalista do logos.
Qual seria o papel dos dialetos no processo criativo pasoliniano? Sinalizaria o seu uso dos dialetos um desejo de
retorno à origem ou, antes, um desejo utópico?
Há um fio condutor que une o dialeto friulano [da
região de Friuli] dos primeiros poemas, o caráter romanesco dos romances e a assim chamada conversão ao cinema -todas opções criativas que pretendem superar o convencionalismo asfixiante da linguagem, encontrar uma expressividade corpórea,
imediata. Por trás disso, há mitologias decadentes,
mas há também a influência da antropologia: seja
pelo interesse pelas culturas locais, seja pela exaltação das linguagens não-verbais (gesto, música, rito).
O sr. escreveu um livro inteiro sobre "A Grécia segundo
Pasolini". Qual seria a definição mais sintética dessa tão
singular topografia pasoliniana?
Usei a fórmula "Grécia bárbara", o que soa contraditório, mas que traz a idéia de uma classicidade nada
olímpica (Pasolini dizia que "barbárie" era a palavra
que mais amava no mundo). A Grécia para ele é metáfora de uma antiquíssima civilização agrária, cíclica e não linear como a cristã; a própria cultura camponesa que ele defendia na Itália contra a modernização selvagem do neocapitalismo.
Há um fundo comum entre o gesto da apropriação pasoliniana da tradição literária grega (por exemplo, na sua
trilogia "clássica": "Medéia", "Édipo Rei" e a "Orestíada") e de temas bíblicos (em "O Evangelho segundo São
Mateus")? Ou haverá sobretudo diferenças?
Não há grandes diferenças. O fundo comum é, como
disse, a cultura camponesa. Não por acaso o "Evangelho" foi rodado num lugar de memória cultural
extraordinário como a região das pedras de Matera,
lugar-símbolo de uma cultura extremamente arcaica, mágico-sacral, na Lucânia (sul da Itália), um lugar pouco integrado ao sistema nacional italiano que
foi objeto de estudo do nosso famoso antropólogo
Ernesto de Martino.
O sr. escreveu um livro de grande erudição sobre o tema do duplo na literatura
ocidental. Quais seriam os duplos de Pasolini nas tradições italiana e européia?
Na tradição literária italiana, primeiramente Dante, tanto como símbolo
quanto como modelo de uma expressividade dissonante, "plurilinguística". Na "Divina Mímese", obra póstuma publicada logo após a sua morte,
Dante é realmente um duplo de Pasolini. E Giovanni
Pascoli, a quem dedicou sua tese de graduação e com
quem comunga a forte tendência ao retorno e à simbiose com o corpo materno.
Duplo especular pode ser considerado D'Annunzio,
poeta que Pasolini detestava, mas com quem tem aspectos em comum, entre eles o fato de saber brincar
com a própria figura pública.
Na tradição européia, o poeta preferido foi sempre
Rimbaud, por seu caráter visionário, mas há afinidades com outros poetas: Mandelstam ou Pound, por
exemplo. Menos previsível, mas muito incisiva, foi a
relação com Proust, sobretudo pelo aspecto infinitamente desejável e a desesperada "inaferrabilidade"
do real -tema intimamente ligado, no nível da forma, a uma certa infinitude estrutural.
Não por acaso o último Pasolini privilegia a forma
do projeto: em "Notas para uma Orestéia Africana",
"Notas para um Filme sobre a Índia", nos poemas
das últimas coletâneas, no romance inacabado "Petróleo", pensado como obra em fragmentos.
Qual a ligação de Pasolini com o decadentismo literário?
Ligação profunda: exotismo, barbárie, imediaticidade corpórea, poética pictórica -núcleos temáticos
de origem decadentista. Ainda que o decadentismo
de Pasolini seja sempre relido pelo filtro da antropologia e da psicanálise, modelos racionais de leitura
do real que, como o marxismo, jamais foram abandonados, apesar de crises recorrentes. A barbárie
torna-se em Pasolini uma forma de vida, um modelo
de mundo, e não uma evasão irracionalista.
Pasolini foi definido pela crítica um herético: dissidente,
rebelde, iconoclasta. Marxista inspirado pelo cristianismo primitivo, homossexual declarado numa época "politicamente incorreta". Hoje o que se pode dizer desta carga contraditória? Não o terá reabsorvido o cânone?
Talvez, em parte, sim. A Itália, país que o perseguiu
por décadas, hoje tende a santificá-lo. Muito de seu
sucesso internacional também se deve a uma cultura
do "politicamente correto", algo que lhe era muito
estranho. Hoje ninguém mais se escandalizará com a
coexistência de marxismo e paixão pelo Evangelho,
como ocorreu na época, sobretudo dentro da esquerda francesa. Quanto à homossexualidade, haveria muitíssimo a dizer: Pasolini tornou-se homossexual declarado não por opção, mas devido a um processo por corrupção de menores que o exilou da sua
região, o Friuli, e do Partido Comunista.
Hoje, a quase 30 anos de sua morte, pode-se dizer
que o fenômeno tantas vezes por ele denunciado nas
vanguardas, isto é, a tendência de a mídia absorver
as transgressões, o envolveu também (e isso era inevitável). Mas o sucesso da sua obra em esferas culturais tão distantes testemunha também, creio, a sua
capacidade de transfigurar a carga de contradições:
de transformar o "escândalo de contradizer-me" numa fonte inesgotável de criatividade.
Susana Kampff Lages é professora do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora
de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp).
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