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DUAS VOZES DA CRÍTICA...
EM "CORAÇÃO PARTIDO",
O CRÍTICO DAVI ARRIGUCCI JR.
ANALISA A TENSÃO ENTRE SENTIMENTO E REFLEXÃO NA POESIA DE
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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Coração Partido
153 págs., R$ 25,00
de Davi Arrigucci Jr. Editora Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP,
tel. 0/ xx/11/ 3218-1444).
Ettore Finazzi-Agrò
especial para a Folha
Circula muito sangue neste livro
de capa dura e sobrecapa vermelha, justificando, de modo icástico, o título. Sangue que se adensa
e se derrama, que se faz pensamento e
sentimento, animando o corpo textual
deste organismo diminuto, deste livro
fechado em si mesmo e aberto às palavras de um grande poeta nascido há cem
anos.
A longa viagem crítica de Davi Arrigucci dentro da poesia moderna brasileira devia, quase fatalmente, o levar a transitar pela obra de Drummond. E o encontro se dá justamente no momento tópico da celebração, no ano e no mês em
que o escritor nasceu em Itabira, um século atrás: coincidência almejada ou puro acidente, mas em todo caso encruzilhada necessária -daquela necessidade
que vem da procura e da sorte, da vontade e do imprevisto; daquela necessidade,
enfim, que cava um lugar e um tempo especiais dentro da anomia do espaço e do
anonimato da história.
De fato, aqui, a celebração não se apresenta como "glorificação de uma Ausência" (como diria Roland Barthes), mas é
tentativa de se colocar à escuta daquela
batida funda, daquele coração vibrando
nas entranhas de uma escrita presente e
atual no seu caráter misterioso, na sua
verdade ainda indecifrada.
O xis do problema
A forma do encontro, do cruzamento entre o escritor e
o seu intérprete, se manifesta logo no
conteúdo do primeiro capítulo do livro,
em que temos a ver com "o xis do problema", temos a ver, então, com o centro (o
coração) de todos os possíveis caminhos
hermenêuticos. A encruzilhada, o xis, o
nó ligando coisas diferentes é logo pensado como o modo de ser específico de
uma poesia "em que tudo acontece por
conflito" (pág. 15) e que tem na base esse
enigma, ou seja, esse significar originário
e radical mitificado na imagem da esfinge. Lugar edipiano, talvez, em que se manifesta o "drama" de uma linguagem
obrigada a ligar a reflexão -"que espelha na consciência o giro do pensamento
refletindo-se a si mesmo" (pág.16)- ao
sentimento.
Obviamente Davi Arrigucci não tenta
desatar esse nó constitutivo, mas procura, por um lado, mostrar a genealogia
poética do lirismo meditativo de Drummond e, pelo outro, acompanhar os movimentos de uma escrita que, a partir daquela encruzilhada arquetípica, continua se entranhando num labirinto que não tem saída, a não ser a saída por meio da imagem emblemática, isto é, por meio
da reproposição do enigma na sua vertente figural e, mais uma vez, problemática (estou pensando na orquídea fechando o "Áporo" ou na salamandra
que aparece no verso final de "Mineração do Outro", poemas analisados magistralmente no livro).
Razão e sonho
Reconstruir a tradição, refazer a história desse "casamento"
entre "um esquema de idéias" e a "expressão dos sentimentos", significa, para
o crítico, voltar ao romantismo e, mais
em particular, remontar à "Frühromantik" do círculo de Jena, em que, pela primeira vez numa perspectiva declaradamente moderna, se tentou levar à unidade aquilo que não pode ser unificado, isto é, se tentou combinar num só gesto, ao
mesmo tempo filosófico e poético, a lógica e o inconsciente, a razão e o sonho, a inteligência e o coração.
De fato, os nomes de Schlegel e de Novalis ecoam várias vezes nas páginas de
"Coração Partido", sobretudo quando o
seu autor procura mostrar como Drummond expressou o seu sentimento "do
mundo em discórdia" por meio do rebaixamento do lugar do poeta (e do poético) que encontra a sua manifestação
mais evidente no uso do "Witz", ou do
"chiste", sua mais fiel tradução portuguesa. Sabe-se do papel fundamental
que o primeiro romantismo alemão legava a esse recurso, enquanto possibilidade de compor imediatamente, num
contexto irônico, a heterogeneidade do
mundo e do sentimento -e o seu uso
por parte do poeta brasileiro tem, na opinião de Arrigucci, a mesma função: "Dar
forma às coisas desencontradas que pululam no mundo e nunca deixam de pulsar junto com o coração batendo também em descompasso"(pág 32).
Nessa mesma linha, poderia talvez ser
lembrado como esse rebaixamento comporta também um deslocamento metafórico, tanto do sujeito quanto do objeto,
fato que permitiu ao Schlegel da fase do
"Athenäum" e, sobretudo, a Novalis
(1772-1801) pensar o mundo -e a relação do sujeito com o mundo- fora de
qualquer sintaxe ou razão habituais e
dentro, por contra, de um novo paradigma lógico-figural, que encontrava a sua
expressão mais contundente na imagem
do "arabesco": imagem, essa, que voltará
a ser fundamental na percepção do universo urbano por parte dos artistas dos
finais do século 19 e da primeira parte do
século seguinte.
Obra orgânica
Mas isso não tira nada à análise de Arrigucci (fora, talvez, a
possibilidade de repensar mais um pouco a relação entre a poesia drummondiana e a(s) cidade(s), pouco explorada no
livro)- análise, a do crítico paulista,
que, transitando pela leitura atenta de alguns dos textos mais conhecidos do escritor mineiro, chega a dar conta por
completo de uma obra poética que ele vê
como absolutamente coerente e orgânica, posto que "desde o começo trouxe
em si mesma o fermento de superação
dos problemas que jamais deixou de incorporar, absorvendo nas camadas profundas a experiência histórica, que não
se confunde necessariamente com os
eventos de fora"(pág 18).
E é essa coerência no conflito, é esse caráter orgânico de uma lírica toda marcada pela reflexão sentimental (ou pelo
sentimento reflexivo), que volta a propor
uma imagem quase física -mas beirando sempre a metafísica- da poesia de
Drummond, a partir, mais uma vez, do
seu centro ambíguo, do seu "coração
partido" pulsando sangue e dando linfa a
todos os versos e sendo, aliás, o reflexo
inevitável de um "tempo de homens partidos" (pág. 100).
Dar sentido ao mundo
Um "coração pensativo", em que "a paixão é também o ardente desejo de inquirir friamente a razão da discórdia" (pág. 137),
mas ao mesmo tempo um "coração numeroso" (título de outro famoso poema
drummondiano, curiosamente não citado no livro de Arrigucci) em que a heterogeneidade do real se abriga dentro da
homogeneidade precária do Eu: um coração, afinal, que lateja entre a diástole de
um pensamento que tenta pensar o
mundo e lhe dar sentido e a sístole de um
mundo refratário a qualquer lógica, deixando marcas enigmáticas e indecifráveis, cujo sentido só se deixa apanhar pelo viés da sensação.
Neste livro em que o sangue se coalha e escorre sem parar, neste livro
denso em que um estilo inimitável flui
nas veias de um discurso crítico de altíssimo nível, neste livro, enfim, em
que a razão hermenêutica vem sempre associada à paixão pelo objeto indagado, aquele que se poderia definir
como "pensamento sentimental" ou
"sentimento raciocinante" se impõe,
então, como princípio estético (e ético) fundamental, deixando, talvez,
para outro estudo, a análise da relação
primária entre coração e memória
-lembrando, por exemplo, como o
verbo latino "re-cor-dari" inclui a palavra "cor", o que faz do "coração" o
lugar da memória, como aliás é curiosamente testemunhado por expressões do tipo "par coeur" ou "by
heart"- que é outra vertente importantíssima da poesia drummondiana
e que só recuando até as raízes da cultura ocidental, muito antes do romantismo, poderia ser investigada.
Mas essa já é outra história, em que
circula um sangue, quiçá, diferente.
Ettore Finazzi-Agrò é professor titular de literaturas brasileira e portuguesa na Universidade de Roma/La Sapienza, autor de "Um Lugar do Tamanho do Mundo" (ed. UFMG), sobre
Guimarães Rosa, e "O Álibi Infinito" (ed. IN-CM,
Lisboa), sobre Fernando Pessoa.
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