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...ENTRE O ENIGMA E A NEGATIVIDADE
ARTIGOS DE "INTERVENÇÕES", DE LUIZ COSTA LIMA, FAZEM UM BALANÇO CONSISTENTE DA LITERATURA E DA CULTURA BRASILEIRAS DESDE O SÉCULO 19
Intervenções
428 págs., R$ 44,00
de Luiz Costa Lima. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, 6º andar, CEP 05508-900,
SP, tel. 0/xx/11/3091-4008).
Alcir Pécora
especial para Folha
Intervenções" é o novo livro de Luiz
Costa Lima, professor titular de Literatura Comparada da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica-RJ. O volume reúne artigos que, com alterações, foram produzidos no período de 1993-2001, em diversas circunstâncias de sua
militância crítica: a aula para a defesa da
titularidade; os artigos para a "Revista
USP"; para as cariocas "Inimigo Rumor"
e "Tempo Brasileiro"; para o Centro de
Estudos Murilo Mendes, de Juiz de Fora;
para a "Revista Colóquio/Letras", de Lisboa; para o Mais! e para o "Idéias", do
"Jornal do Brasil".
Não se trata, contudo, de crítica ligeira.
A maioria dos textos, conquanto curtos,
gera reflexões consistentes, não raro brilhantes, que podem ser divididas em três
grupos principais de matérias.
O primeiro e, a meu ver, o melhor deles, coleta artigos sobre a poesia de Bandeira, Cabral e Murilo Mendes. Em relação a Bandeira, mostra que a sua poesia
transforma a expressão temporal em impressão afetiva, com simultâneo esvaziamento do presente e da pessoalidade. O
resultado é a produção de um passado
afetivizado que postula uma ética da fraternidade. Em Cabral, diferentemente, o
presente não se desfaz, mas sim a distinção, nele, entre percepção e imaginação,
bem como toda idéia de psicologia, de
que resulta uma ética da pólis.
Efeito de clareza
Desenvolvendo-a,
Costa Lima examina e reforça a conhecida superposição que Cabral postula entre poesia e crítica, de modo a valorizar o
artista-artesão e não o homem-artista.
Discorda do poeta, entretanto, quando
essa posição o leva à crítica do primeiro
romantismo como causa do favorecimento desmedido da expressividade individual e reorienta a discussão para a
oposição entre Cabral e os seus contemporâneos da chamada "geração de 45".
Aqui, o foco do contraste é a sua restrição à dicção elevada que pretendiam restaurar após o choque de coloquialismo
modernista, que, por sua vez, entrara
num beco sem saída com o poema-piada. A opção cabralina, em parte derivada
de Drummond, pelas palavras em liberdade em oposição às palavras enobrecidas, traduz-se pela sua exploração dos
efeitos de clareza, entendida como apagamento da subjetividade e realce do
material e do visual, o que produz uma
poesia assentada tanto em abstração
quanto em concreção.
É esse eixo de orientação cabralina que
vai ser operante no segundo grupo de
textos de "Intervenções".
Mário e Murilo
Antes de passar a
ele, será preciso referir as excelentes análises que Costa Lima faz de Murilo Mendes. De cara, nota que o catolicismo em
Murilo favorece o surgimento de uma
imagética singular, da mesma maneira
que as paisagens sicilianas e galegas. Em
conjunto, convertem a anterior incontinência de sua poesia em intensidade.
Tal percepção leva Costa Lima a reler
as críticas de Mário de Andrade ao poeta
e considerá-las tributárias de seu "autodidatismo" mesclado a um "calamitoso
essencialismo nacionalista". Ressalta
também o incompreensível conservadorismo de Mário na atribuição de heresia
ao "catolicismo agônico" de Murilo, que
via a igreja avançar em curvas, indicando-lhe o seio e o fogo do inferno, melhor
que o céu.
O segundo grupo de artigos é relativo
basicamente a autores surgidos nos anos
80, poetas (Duda Machado, Dora Ribeiro, Ronaldo Brito, Carlito Azevedo, Paulo Henriques Britto, Sebastião Uchoa
Leite, Frederico Barbosa) e ficcionistas
(Jair Ferreira dos Santos, Bernardo Carvalho, Rubens Figueiredo, Milton Hatoum). Em relação aos primeiros, o que
de mais geral se pode dizer das leituras
de Costa Lima é que perseguem a linhagem construtivista valorizada por ele,
antagônica à celebração subjetivista e
desbundada da poesia dos anos 70.
Considerando os pólos de interesse da
poesia de Cabral, Costa Lima os distribui
em tendências abstracionistas ou visualizantes, cuja matéria é a de um mundo
em ruínas, no qual a atividade poética se
confunde com a de composição de desastres. O sensualismo, quando vem, insinua-se na forma de traços ou incisões
minimalistas, de plasticidades ou de processos mentais detectados em "estado de
palavra".
Assim, o vocabulário do crítico, que
valoriza a "tradição da negatividade" da
poesia moderna, reserva lugares-chave
para movimentos dessubjetivantes, geografias mentais, gestos sintáticos, formas
que apenas germinam, intransitividade,
indeterminação, enfim, termos que evidenciam o vazio próprio do discurso artístico, que pode ser suplementado com
os conteúdos fornecidos pelo leitor, sem,
contudo, preenchê-lo ou confundir-se
com ele.
No caso dos prosadores, o crítico acentua a incongruência de buscar o verossímil totalizante ou a submissão das narrativas ao relato de acontecimentos, postulando, na direção inversa, a vida dos impulsos indagativos, da hostilidade à
transparência, da opacidade da obra em
processo, em que o aleatório, o dissimulado e o poroso são as regras dos jogos da
negatividade.
A relevância dos novos
Sei bem
que, operando por meio de resumos
brutais, esta resenha corre o risco de minimizar a empreitada de Costa Lima
diante dessa produção literária recente.
E nada poderia ser mais enganoso, pois está clara a relevância dos novos em
sua compreensão da atividade crítica, seja pela atenção com que se debruça nos
textos; seja pela persistência com que
acompanha os sucessivos lançamentos,
buscando surpreender o que neles se resolveu ou permanece como impasse; seja
pelo exercício inteligente que pretende
apontar o que, em cada um, se cumpre
de modo mais radical diante da linhagem literária em questão.
Com alguma dureza, até poderia dizer
que o seu corpo-a-corpo com os novos
investe-os de torneios teóricos tão refinados, de articulações com paradigmas
filosóficos e poéticos tão decisivos na tradição ocidental, que, a despeito do juízo
do próprio crítico, eles são elevados, por
vezes, a alturas inverossímeis.
Pedras de toque
Apenas para dar
um exemplo: diante de Charles Baudelaire, T.S. Eliot e Wallace Stevens, como
dimensionar a obra de Sebastião Uchoa
Leite -de resto, ótimo poeta e tradutor?
Nesses casos menos felizes, as mediações descompensadas elucidam menos a
confecção das obras do que produzem
recheios filosóficos para elas, o que sempre poderá ter o efeito generoso de estímulo aos novos, mas não o de uma crítica que dá ao objeto o peso que lhe é devido ou crível.
O último bloco de textos relê "clássicos" da cultura brasileira, que Costa Lima não estranha totalizar como "nossa".
Machado, Nabuco, Euclides, Oliveira Lima, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque,
Merquior e Antônio Callado são os autores em foco. Em relação a Machado, o
crítico pontua as conhecidas asserções
de Roberto Schwarz a respeito da "versatilidade" de seu narrador, propondo a
sua articulação com um princípio estilístico, evidente em suas crônicas, que chama de "auditividade", isto é, uma espécie
de falsa incorporação da oralidade que
conduz à ruptura da linearidade da frase.
Já na polêmica de Nabuco com José de
Alencar, Costa Lima observa a irrupção
de um "trauma" que, para ele, ainda
marca a intelligentsia brasileira: o da presença de uma sociedade dividida entre
senhores e párias, cujos efeitos incluem a
produção de um pensamento ocioso e
sentimental, viciado nas formas antípodas, mas igualmente simplistas, do realismo e da eloquência insinuante.
Intérpretes do Brasil
Passando a
Euclides, o crítico percebe a sua exigência da "base científica" para a composição da impressão artística, até o momento de insurgência do ornato contra o seu
papel de moldura e o aparecimento de
um "híbrido inclassificável".
Adiante, comparando o tema da "cordialidade", em Sérgio Buarque, e o da
"hipocrisia pública", em Oliveira Lima,
que referem a confusão de público e privado no Brasil, Costa Lima os opõe ao tema da "miscigenação" pensada por Gilberto Freyre e reclama a atenção dos estudiosos para a relevância do "D. João 6º
no Brasil", de Oliveira Lima, que supõe
injustamente esquecido.
Para encerrar, o crítico repensa Merquior e Callado, autores com exigências
de inserção no mundo, para chegar a hipóteses melancólicas da lucidez perante
o terror da ditadura ou da morte. Eis aí,
num relance vertiginoso, as 428 páginas
de "Intervenções": é torcer para que não
desinteresse o leitor pelo trabalho de um
crítico que entende ser seu ofício a independência e a ousadia de pensar. Apenas
um provincianismo irreparável pode explicar a ausência de suas hipóteses nos
debates literários em São Paulo.
Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina
de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento"
(Edusp/Editora da Unicamp).
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