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+ arte
Criticado pelo modo como tratava as dissonâncias, o compositor italiano
contra-atacou com uma artimanha de guerra e inaugurou o estilo moderno
Monteverdi, um Maquiavel na música
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
do Conselho Editorial
Durante a Revolução Francesa,
em 1794 mais precisamente, foi
guilhotinado um dos primeiros
grandes musicólogos da história moderna. Ele anunciara a primeira
"lei da musicologia": "Em música nada
se cria, nada se perde, tudo se transforma". Mais tarde esse princípio veio a ser
conhecido como a primeira lei da termodinâmica. O musicólogo sacrificado em
nome da liberdade e da igualdade se chamava Antoine Laurent Lavoisier e, embora os termos com que em realidade
enunciou seu princípio sejam bastante
diversos dos mencionados acima e consagrados pela tradição, o significado é o
mesmo.
Na história da música não há revoluções, apenas transformações. Eis por que
historiadores e comentaristas tanto se
contradizem. Uns afirmam que Beethoven foi um revolucionário, outros atestam com a mesma convicção que era um
conservador, um reacionário, pois nunca conseguiu, de fato, se livrar da "forma
sonata" e de outras fórmulas estruturais
clássicas. Críticas mais severas ainda são
dirigidas a Brahms, que é freqüentemente e com alguma razão acusado de arcaizante, enquanto certos autores o consideram como intemporal, acima de estilos e de categorias.
Com Bach há uma certa benevolência.
Teria ele a infelicidade de acontecer no final de uma era gloriosa, o barroco, e,
aceitando a árdua tarefa de resumi-la, de
encerrá-la com chave de ouro, não teria
tido a oportunidade de inovar. Até seus
filhos, músicos de sucesso, contribuíram
para essa avaliação.
Regra empírica
Somente Claudio
Monteverdi (1567-1643) escapou a essa
crítica, e isso ocorreu graças a um maquiavélico estratagema. Criticado acerbamente por comentaristas seus contemporâneos, principalmente o todo-poderoso teórico de então, Artusi, pela
sua maneira de tratar dissonâncias, contra-atacou com uma artimanha digna do
autor de "A Arte da Guerra". Aliás, vale
aqui um comentário ou, mais ainda, o
enunciado de uma regra empírica.
Críticos sistematicamente atacam o
compositor contemporâneo pela inobservância das regras vigentes e, o do passado, pelo seu conservadorismo, pela sua
subserviência às normas e princípios da
harmonia. O que se pode depreender
dessa observação é que o crítico é necessariamente um ente anacrônico.
Eis que, entretanto, surge um gênio
que derrota com um simples ardil a mais
ferrenha crítica. Monteverdi emudece a
crítica de seu tempo e simultaneamente
se eterniza como revolucionário com
uma declaração inequívoca de que um
novo estilo estava sendo inaugurado e
que, portanto, não havia obrigação nenhuma de novas composições obedecerem as regras do "stile antico".
Esse pressuposto confundiu inteiramente seus críticos contemporâneos,
mesmo porque ninguém sabia muito
bem o que era, ou melhor, o que viria a
ser este "stile novo" ou "moderno". Posteriormente, percebendo melhor a realidade da mudança, historiadores passaram a chamar o "antico" de "estilo estrito" e, o moderno, de "livre". Ou seja, não
houve de fato uma revolução do estilo,
apenas eventuais inobservâncias das regras rígidas de harmonia da maneira que
foram proclamadas por Palestrina, além
de eventuais usos da monodia, recuperada da Idade Média. E o compositor do
barroco continuou atrelado em grande
medida às mesmas regras que aquele do
Renascimento. A famosa unidade de estilo do Renascimento era quebrada, embora as leis de harmonia, contraponto,
ritmo etc. continuassem imperando.
Eis por que alguns autores dos séculos
18 e 19 distinguem os dois estilos como
"gravis" e "luxurians", o que realmente
reflete mais o caráter subjetivo de ambos.
E essa ambivalência de estilos atingiu no
barroco não somente a música profana
como também a eclesiástica.
Então o que realmente significa essa segunda prática, esse "stile moderno", "livre", "luxuriante", afinal? Em realidade o
que aconteceu de modernização, além
da oficialização de algumas dissonâncias, foi uma recuperação de certas formas tradicionais da Idade Média. Monteverdi escolheu seu quinto livro de madrigais para inaugurar o estilo moderno,
em mais um notável golpe político. Justamente na forma renascentista dominada pelas regras do "estilo antigo", o madrigal, introduz, de maneira tímida embora, alguns toques da monodia acompanhada, banidas por Palestrina, como
Eva o fora do paraíso. A distinção entre
uma ária de Monteverdi e uma balada de
Machaut do início do século 14 é extremamente sutil.
Homofonia
O barroco abrigará desde então uma permanente competição
entre a monodia e a polifonia, como havia já ocorrido na Idade Média, que só se
resolverá no classicismo com uma fórmula de conciliação; a homofonia, em
que "vozes distintas" se agregam, complementando umas as outras.
Na base do conflito está a questão da
"inteligibilidade". A polifonia privilegia a
"música" em detrimento do "texto". A
monodia, reduzindo o discurso musical
a uma única voz, embora acompanhada
pelo suporte do baixo-contínuo, facilita a
compreensão da narrativa. Aliás, é nessa
mesma época que "nasce" a "ópera barroca", com a adoção de uma alternância
entre recitativos, segmentos puramente
declamados, e árias, onde o canto era reduzido a uma única voz.
Nos dois casos, recitativos e árias, alcançavam-se uma inteligibilidade e uma
concisão inatingíveis com a polifonia extremamente elaborada que prevalecia na
"maneira antica". Não obstante continuaram sendo usadas formas polifônicas, inclusive, com alguma freqüência,
por Monteverdi, em suas obras litúrgicas
e em madrigais. Somente da ópera foi a
polifonia, desde então, praticamente banida, restrita a momentos muito especiais. A inteligibilidade, a clareza, triunfaria enfim sobre a grandiloqüência espessa da polifonia. A narrativa dramática
sobrepujaria a música. Mas não por muito tempo.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas e membro do Conselho Editorial da Folha.
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