São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ILUMINISMO TROPICAL


"ENCICLOPÉDIA DA FLORESTA" JUNTA A CIÊNCIA E O CONHECIMENTO TRADICIONAL DAS POPULAÇÕES AMAZÔNICAS PARA MOSTRAR QUE OCUPAÇÃO HUMANA E DIVERSIDADE BIOLÓGICA NEM SEMPRE SÃO EXCLUDENTES


Claudio Angelo
Editor-assistente de Ciência

Durante séculos, os colonizadores ibéricos tentaram impor a racionalidade européia à Amazônia, sem sucesso. As tentativas começaram com o próprio batismo do maior rio do mundo em alusão às guerreiras míticas da Grécia, no século 16. Ganharam corpo no governo de Pombal, o déspota esclarecido que nomeou o irmão governador do Grão-Pará, em 1751 -e em cujo governo se proibiram as línguas indígenas- e encontraram seu ápice já em mãos brasileiras, com o regime militar, que enxergou na floresta um obstáculo ao desenvolvimento e tentou atravessá-la com estradas.
Os cinco séculos de teimosia custaram caro à maior selva tropical do mundo e a seus 20 milhões de habitantes. A população indígena, que se contava em milhões, foi reduzida à casa da centena de milhar. Cerca de 14% da floresta (ou 16 Dinamarcas) virou pasto ou lavoura, sem que os habitantes da região tenham tido um centavo de retorno em escola, hospital, casa ou comida.
Agora, o iluminismo volta à carga. Só que às avessas: são os saberes da floresta que se reúnem e se fazem ouvir, usando um veículo europeu por excelência -o livro. Na "Enciclopédia da Floresta", lançada no mês passado pela Companhia das Letras, um grupo de 145 cientistas, seringueiros e índios apresenta o conjunto das práticas tradicionais dos habitantes do alto rio Juruá, no oeste do Acre, como uma alternativa ao modelo de desenvolvimento que até agora tem mergulhado a Amazônia em miséria e degradação ambiental.
A obra é resultado de um projeto de 12 anos, que começou em 1990 como uma proposta à Fundação MacArthur, dos EUA. A idéia era saber se populações tradicionais seriam capazes de gerenciar uma área de conservação ambiental. O local do estudo seriam os 5.062 km2 da Reserva Extrativista do Alto Juruá, oficializada naquele mesmo ano pelo governo federal, sob demanda dos seringueiros. A região é um "hotspot" de diversidade biológica, aglutinando espécies que ocorrem na zona subandina e nas regiões central e leste da Amazônia.
Para quem não acredita no tal desenvolvimento sustentável, que volta à pauta no mês que vem durante a Rio +10 (conferência da ONU em Johannesburgo, África do Sul, que marca os dez anos da Eco-92), a resposta é sim. Não só as práticas econômicas de seringueiros e índios -das etnias caxinauá, ashaninca e catuquina- não afetaram a biodiversidade como, em certos casos, perturbações induzidas por elas ampliaram o número de espécies.
No centro dessa razão tropicalizada está, ironicamente, uma portuguesa. Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, matemática e antropóloga, nascida em Lisboa e criada em São Paulo. Professora da Universidade de Chicago (EUA), ex-aluna de Claude Lévi-Strauss e uma das lendas vivas da antropologia brasileira, ela organizou a enciclopédia juntamente com o marido, o também antropólogo Mauro Barbosa de Almeida.
Em entrevista à Folha, concedida por celular de Cardaillac, na França, onde passa as férias, Carneiro da Cunha falou sobre a experiência de fundir ciência e conhecimento tradicional. Ela afirma que a sustentabilidade "depende de uma série de incentivos e é possível" e que a vida na floresta está longe de ser a penúria que se imagina. " O cálculo do valor do rendimento de um seringueiro é muito acima do salário mínimo. Tanto que ele só se dispõe a trabalhar para terceiros mediante uma diária muito alta." Leia a seguir trechos da entrevista.

Por que produzir uma enciclopédia de conhecimento tradicional? Isso não é um contra-senso em relação à maneira como esse conhecimento é transmitido?
Isso é um paradoxo que eu sublinho. É paradoxal fazer uma enciclopédia impressa de um conhecimento que se transmite de forma muito mais lábil e móvel. O que a gente quis fazer foi dar uma demonstração da riqueza desses saberes. Mostrar que existem conhecimentos e práticas que são extremamente importantes em si, que estão vinculados a um certo território e também a uma forma de organização social. Quando a gente teve a idéia, em 1990, ainda era muito discutida essa questão de se havia um conhecimento tradicional que valesse a pena conservar. Essa enciclopédia fazia parte desse projeto na medida em que a gente queria demonstrar que existem formas de uso de recursos naturais, tanto entre seringueiros quanto entre indígenas, que foram capazes de manter uma altíssima biodiversidade.
Então, a enciclopédia deve ser usada principalmente pelos detentores do conhecimento da região.
Claro. A gente quer que eles usem, ela vai ser distribuída nas escolas, a gente quer que faça parte e se valorize esse conhecimento local -na escola, em geral, só se ensina coisas de fora-, ao mesmo tempo, a gente adverte que isso não é uma forma [de abordar o conhecimento] nem exaustiva, nem petrificada.É algo que se transforma e que é importante que continue existindo desse jeito, porque existem descobertas importantes que foram feitas e o foram por meio de um tipo específico de prática.
Conhecimento tradicional e conhecimento científico parecem imiscíveis. A ciência é mensurável, replicável, enquanto o conhecimento tradicional pode admitir, por exemplo, que pedras sejam seres vivos, como vocês colocam no começo do livro. Dá para juntar as duas pontas?
A primeira parte da enciclopédia mostra a riqueza de diversidade biológica e a história da região. A partir daí, o que a gente tenta mostrar é que, através de visões de mundo que aparecem em formas diferentes de classificar o mundo, há princípios organizadores das populações tradicionais e que permitem chegar a resultados comprováveis.
Por exemplo?
Talvez o exemplo mais conhecido seja o da ayahuasca. Não é uma planta cujo princípio tenha sido descoberto, e sim a mistura de um cipó com uma folha, com efeito alucinógeno. Só a folha não faz efeito. O princípio ativo da folha é inibido por uma enzima do estômago. A grande descoberta é que esse cipó é capaz de anular esse efeito no estômago. De forma que não é apenas uma descoberta de um princípio natural, isso é resultado de experimentação. É uma invenção. E há outros, como o quinino e a borracha.
Como foi o diálogo entre as populações e os cientistas? Houve resistência de alguma das partes?
Os biólogos estiveram muito mais entre os seringueiros. Havia na nossa equipe uns biólogos bastante arrojados. Como o Adão Cardoso, um especialista em sapos que ia no meio da noite para lugares infestados de cobras e sapos para tentar gravar os sons dos sapos e capturar espécimes. Os seringueiros adoraram, acharam interessantíssimo e começaram a colecionar sapos. O interesse pelas coisas da mata é um interesse que existe sempre, com dez anos toda criança sabe as coisas da mata. Os biólogos foram muito populares. E se surpreenderam com a qualidade e a quantidade de conhecimentos.
Esse livro abre um debate sobre a conservação das populações tradicionais com um fator de conservação da floresta. Mas a própria definição de população tradicional é escorregadia, não? Colonos recém-chegados podem se declarar população tradicional para ter acesso à terra, do mesmo jeito que se vê, no último censo indígena do IBGE, um aumento desproporcional no número de índios auto-declarados...
Você tem razão de dizer que "população tradicional" é uma categoria guarda-chuva. Mas, parafraseando o Evangelho, a população tradicional se reconhece pelas suas práticas, pelos seus atos. População tradicional é aquela que opta por adotar ou concertar uma série de práticas que são pouco invasivas, que são pouco destruidoras, que têm mecanismos de auto-regulação, que são aquelas que a gente descreveu. Nada impede que uma população se torne uma população tradicional. Para isso é que devem existir incentivos. Mesmo uma população que o senso comum não teria dificuldade de reconhecer como tradicional pode ir por muitos caminhos. Se ela não tiver opções, ela pode, por exemplo, começar a vender madeira para madeireiros. O que é importante nesse conceito de população tradicional é uma opção por um certo tipo de uso dos recursos.
É uma opção ou uma falta de opção?
Aí é que está: é uma grande opção. Durante muito tempo, achava-se que fosse uma falta de opção e que os seringueiros que moravam na floresta eram uns coitados que não tinham para onde ir e estavam lá largados. Essa foi a imagem que o Euclydes da Cunha deu. Quando a economia da borracha desmoronou, os seringueiros ficaram lá. E ficaram lá porque a vida na floresta era uma vida boa. É uma opção. Por que eles teriam ficado se não fosse justamente uma vida de fartura? É uma vida que tem suas limitações quanto à circulação, mas que por outro lado se compara muito favoravelmente com a vida dos ex-seringueiros nas cidades. Mas eu queria voltar a uma questão, quando você falou dos conhecimentos, é que essa enciclopédia foi toda auto-censurada. Os conhecimentos em geral, até agora, não estão protegidos. Há uma lei de 1995 de autoria da senadora Marina Silva que está dormindo no Congresso. Não existe uma legislação que proteja os conhecimentos tradicionais. Se a gente publicasse coisas que têm interesse comercial, a gente estaria pondo esse conhecimento no domínio público.
E quais foram os critérios para definir o que seria censurável ou não?
Olha, as práticas agrícolas e práticas de pesca a gente achou que não tinha problema. Agora, plantas úteis, plantas medicinais, tudo isso a gente colocou na enciclopédia. A gente se restringiu às coisas mais conhecidas. Por exemplo, as variedades de mandioca. Outra coisa amplamente conhecida é o veneno de um certo sapo. Está na literatura, mais do que publicado. Mas muita coisa a gente não pôs para proteger os direitos intelectuais das populações locais.
Por falar em direitos intelectuais, a gente tem desde 1992 um impasse sobre a Convenção da Biodiversidade. Na época havia a promessa de um mercado bilionário, mas nada disso se realizou...
Porque não está nada regulamentado no Brasil. Você tem de pensar o seguinte: a Convenção sobre Diversidade Biológica implica na soberania nacional sobre os recursos genéticos. O problema é como é que você transfere esses recursos para as populações que realmente estão cuidando dessa diversidade biológica e dos conhecimentos associados sem destruir as condições de produção desse conhecimento.


"É IMPORTANTE QUE OS PAÍSES QUE TÊM TUDO A GANHAR COM A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE SE ORGANIZEM COMO TÊM FEITO. É PRECISO CRIAR UMA OPEP DA BIODIVERSIDADE"


Esse é um problema sobre o qual vários países estão se debruçando. O Peru tomou a dianteira em alguns sentidos, os países do Pacto Andino também. O Brasil ainda está atrasado. Eu acho que está na hora de realmente chegar a um consenso e a uma votação no Congresso que satisfaça a todas as partes. Nós temos um decreto-lei provisório [uma Medida Provisória", é muito diferente de ter uma lei completa que permita o acesso, mas que preveja que os benefícios cheguem às populações.
Como a sra. avalia a convenção hoje, antes da Rio +10?
A convenção é extremamente importante. Uma das coisas que ela revelou foi que ela era um contrapeso à OMC [Organização Mundial do Comércio]. Claro, não tem a mesma força do acordo Trips [Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio", porque não prevê sanções. Mas, por outro lado, é um contrapeso extremamente importante, porque favorece os países em desenvolvimento, contrariamente à OMC.
E quais são as suas perspectivas para a conferência de Johannesburgo?
Não posso falar muito disso. Mas é importante que os países que têm tudo a ganhar com a Convenção da Biodiversidade se organizem como têm feito. É preciso criar uma Opep da biodiversidade.
Existe um conflito entre a produção de conhecimento na floresta, que parece não casar com a lógica do mercado, e os benefícios que podem resultar para essas populações desse mesmo mercado...
Eu não sei, não, viu? Eu acho que essas populações estão respondendo com muita agilidade a um tipo de mercado muito importante, o grande mercado de produtos naturais que existe na Alemanha e em toda a Europa. E, por outro lado, de uma forma mais ampla ainda, há um mercado que não é de bens de consumo nem de produção, mas de bens de existência. São pessoas que pagam para que uma floresta exista. Elas nunca vão pisar nessa floresta, mas estão dispostas a contribuir para isso. E esses bens de existência são um tipo de mercado. Um mercado novo, até muito à frente daqueles que a gente conhece. Então, em certo sentido, a Amazônia está na vanguarda, não na retaguarda.
Então, a sra. acredita em desenvolvimento sustentável.
Eu acredito. Acredito justamente baseada na pesquisa que a gente fez. É possível? Sim, é possível. É preciso um certo número de mecanismos e incentivos e apoios e é possível.
Muita gente acha que o desenvolvimento sustentável só o é porque as populações são pequenas e têm baixo acesso à tecnologia. Nesse sentido, a sustentabilidade, traduzida na produção no limite da subsistência, não nega a autodeterminação a essas pessoas?
Não é assim que a coisa se coloca. Você tem razão que é preciso uma população pouco densa, é verdade, mas isso não é o mesmo que dizer que são parques sem gente. É o contrário. Onde certas tendências preferem ter parques onde o homem não pode entrar, nossa idéia é que a participação do homem é importante. É verdade que em baixa densidade: é evidente que não pode haver densidade de uma cidade num ambiente desses. Agora, dizer que isso é o limite da subsistência não é verdade. Os seringueiros vivem fartamente. É um modo de vida que para nós parece muito duro, mas eles vivem fartamente. Se você contar a renda deles em termos das proteínas que eles consomem, eles vivem muito acima do nível de subsistência. É uma vida farta, dentro de certas condições. É uma vida muito mais farta do que a que eles têm quando migram para as cidades. O cálculo do valor do rendimento de um seringueiro é muito acima do salário mínimo. Tanto que ele só se dispõe a trabalhar para terceiros mediante uma diária muito alta.
Agora, qual é a perspectiva de futuro para essas populações? Isso é um processo. Há uma tendência a eles manterem esse estilo de vida?
Isso depende justamente de decisões e políticas públicas. Nós tentamos provar que é viável populações tradicionais gerenciarem áreas de conservação, e, portanto, elas deveriam ter uma remuneração dos poderes públicos para esses serviços, que são serviços ambientais. São serviços que hoje em dia não são remunerados.
As famosas externalidades.
Exatamente. Mas não há razão nenhuma para não internalizar e reconhecer esses serviços. A gente paga guarda-parques para os parques nacionais. Por que não pagar pelos serviços ambientais?



Texto Anterior: Rio +10 quer fazer balanço da Eco-92
Próximo Texto: Antropólogo americano reconta conflitos amazônicos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.