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Defesa da fragmentação pós-moderna da cultura e literatura despreza esforço de compreensão da sociedade realizado por críticos como Antonio Candido
Um chapéu de muitos bicos
A forma literária periférica não paga pedágio à precariedade das formações sociais
Salete de Almeida Cara
especial para a Folha
Pelo menos uma coisa hoje em dia
é certa: está difícil para o crítico literário fazer vista grossa ao andamento da ordem mundial. Numa
impressão rápida, parece que as condições desastrosas do estágio multinacional informático do capital estão se impondo de tal modo que virou lugar-comum o que antes era motivo de polêmica: há uma ligação particular entre literatura e sociedade.
Com que então a auto-suficiência do
especialista, com sua aposta numa higiênica ruptura entre as complexidades das
formas sociais e as das formas literárias,
estaria definitivamente abalada? A negação dessas conexões serviu para fazer
brilhar gloriosamente a independência
estética, com o efeito perverso de jogar
na lata do lixo uma boa pista no esforço
de compreensão da sociedade contemporânea, pois até mesmo uma forma literária mal resolvida pode revelar alguns
desvãos da realidade e dos homens.
Dois artigos publicados há pouco na
edição do Mais! de 16/11 (um de Silviano
Santiago, outro de Luiz Costa Lima)
mostram bem o que vem acontecendo.
Os dois tratam, cada um a seu modo, da
situação da cultura e da literatura no
mundo hoje, e por isso vou tomá-los como exemplos pontuais de um conjunto
maior e diversificado. O quadro é curioso, não se restringe à vida intelectual brasileira nem latino-americana e merece
atenção.
Objetos pulverizados
A maior dificuldade continua sendo encontrar o lugar de onde armar o foco crítico. Preocupado com a fragmentação pós-moderna
da atividade literária, Silviano Santiago
se nega a a procurar os culpados, para
não cair em "becos sem saída circunstanciais e individualizados".
Mas a própria enumeração que faz dos
agentes possíveis -a vida pós-moderna,
o escritor, o intelectual, o leitor, os meios
de comunicação de massa, o processo
democrático- deixa claro que respeita
o mandamento hegemônico de desconsiderar a unidade real (mas não igual, como se sabe) do mundo capitalista.
De modo que ele acaba também pulverizando os seus objetos, ao tratar de cada
coisa em seu lugar: em raias diferentes, o
escritor brasileiro exibe déficit crítico em
relação ao mundo e à língua, o grande escritor exibe responsabilidade, o escritor
premiado tem poucos leitores, o escritor
de sucesso vende a realidade neoliberal e
a literatura feminista e confessional
-nicho criado pela própria pulverização pós-moderna-, a priori e para sempre preservada da desilusão do presente,
explode sozinha o cânone metafórico
ocidental!
A armadilha fica mais clara nos arranjos de uma argumentação. No caso, os
conceitos de centro e periferia são usados para dar conta de impasses específicos, num e noutro lugar, no campo das
produções simbólicas. Mas a subdivisão
de critérios independentes entre si (socioeconômicos ou psicoculturais) para
definir os conceitos mais a escolha dos
segundos descartam as conexões entre
organização social e práticas culturais
implícitas num ponto de vista materialista. Centro e periferia servem, assim, para
adaptar a categoria "social" num outro
contexto teórico, atualizando aquele gesto de higienização do especialista.
O artigo de Costa Lima, que comento
desde o início deste parágrafo, classifica
procedimentos psicoculturais de sujeitos
centrais e periféricos, em razão das diferenças nos usos que fazem de moldes
culturais já estabelecidos (manutenção
ou exploração no centro, imitação ou explosão na periferia), dando um pretenso
norte emancipatório para o sujeito periférico. De resto, a explosão depende da
descontinuidade e dos saltos como forma de percurso histórico próprio da periferia, donde a absoluta falta de importância da razão crítica como experiência
acumulada.
Se um uso provoca disrupção, ele é um
verdadeiro milagre, gênese espontânea
de precursor na arte e de ativista na política que já nem dependem de estarem no
Brasil, no Egito ou nos Estados Unidos
(como no comentário sobre Edward
Said). Abalada a classificação genérica,
vem à tona a falácia de uma apreensão
psicossocial da periferia, desconectada
de suas relações com o contexto de mundialização capitalista, no interior do qual
ela é elemento constitutivo desde o processo da colonização. Na boa expressão
de Francisco de Oliveira, trata-se do "caráter "produtivo" do atraso como condômino da expansão capitalista".
Aquele é também o procedimento dos
atualíssimos esforços de Alberto Moreiras, da Universidade Duke, que lida com
espaços terceiro-mundistas como "terceiro espaço" nem central nem periférico, onde surgem obras literárias e práticas culturais alternativas graças aos códigos locais de recepção.
Armado o lugar mais amplo do foco, a
tarefa de estabelecer as conexões entre
formas sociais e formas literárias, na linhagem crítica aberta por Antonio Candido, será, no entanto, trabalhosa. Até
porque a forma literária periférica não
paga pedágio à precariedade das formações sociais (pode haver ótima literatura
em país atrasado), não porque ela pertença a um mundo à parte, da estética ou
dos anjos, mas porque organiza de modo
imprevisível as formas da experiência
prática, individuais e coletivas, ainda que
precárias.
No auge da euforia nacionalista do período militar, Antonio Candido punha o
dedo nessa ferida justo quando, pela esquerda, a "mística terceiro-mundista"
era alternativa ao imperialismo e ao stalinismo. A expressão é de Roberto
Schwarz nos anos 80, encerrados em clima de desilusão quanto ao nosso destino. Apenas o nosso? As independências
dos países africanos ainda eram recentes.
Nos fins dos anos 90, ele volta à carga,
lembrando que perda de autonomia e
perplexidades já eram evidentes também
nos países adiantados.
Se é verdade que os resultados mais catastróficos do capitalismo têm sido visíveis, em primeira mão, nas sociedades
mais problemáticas, pelo menos já sabemos que há alguma coisa no ar além dos
aviões da United e da American Airlines.
Desmonte das organizações político-partidárias e marginalização social alimentam o solo ideológico do que pode
ser chamado fragmentação pós-moderna (Silviano Santiago observou que o solo brasileiro fertilizou e conferiu universalidade ao fenômeno Paulo Coelho). O
que mais?
Não foi à toa que um artigo de Franco
Moretti na "New Left Review" ("Conjectures on World Literature") soou como
provocação: o critério literário comparatista no capitalismo mundial, desigual e
combinado, pressupõe o moderno romance periférico a exigir novas categorias de análise e novo método crítico.
Choveram objeções: é livre o movimento de formas e temas entre centro e
periferias, ou, ainda, há risco de homologia entre desigualdades do mundo econômico e dos sistemas literários. Moretti
respondeu a todas no último mês de
março, pela mesma "New Left Review",
mas sem avançar no assunto e com boa
vontade até para introduzir uma "semiperiferia" como "área transicional".
O que pode ter adiado sua ida ao ponto, que reconhece ser uma questão de
forma (social e literária), citando seu interlocutor periférico Roberto Schwarz. E
que ganharia impulso com uma reflexão
funda sobre o ensaio de Antonio Candido "De Cortiço a Cortiço" (cuja primeira
versão é, pasmem, de 1974!), lição teórica
seminal a desafiar o debate sobre método, como bem viu o crítico periférico já
citado, mas que, além disso, atento às determinações do tempo, é fundamentalmente... uma brilhante análise literária.
Salete de Almeida Cara é professora de linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizadora de "As Melhores
Crônicas de Machado de Assis" (Global).
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