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+ literatura
Ken Monaghan fala da relação do autor de "Ulisses" com a família e
conta a história do Bloomsday, que é celebrado amanhã em todo o mundo
O sobrinho de James Joyce
Betty Milan
especial para a Folha
Ken Monaghan é sobrinho de James Joyce, filho
de May Joyce Monaghan, uma das irmãs do escritor. Desde que se aposentou, em 1987, ele se
dedica em tempo integral ao Centro James Joyce
(Dublin). Embora conheça bem a obra de Joyce, Monaghan se interessa sobretudo pela família do mesmo e
pelas circunstâncias que contribuíram para formar o
escritor. Fez muitas conferências na Irlanda e no exterior e, além de ser diretor do centro, é membro honorário da Fundação Internacional James Joyce desde 1992.
Bloomsday é o dia de Leopold Bloom, ou melhor, da
comemoração do dia em que o personagem de Joyce vive e revive no "Ulisses" a sua história: 16 de junho de
1904. Oficiosamente é o dia em que Joyce conheceu Nora, a comemoração do encontro do escritor e da sua
musa, a mulher de Galway.
Tendo ido a Dublin para cobrir as comemorações, tive a ocasião de conhecer e entrevistar Ken Monaghan
no pátio interno do Centro James Joyce.
O senhor é sobrinho de James Joyce. O que sua mãe dizia
sobre ele?
Cresci numa época em que o nome de Joyce era uma
palavra feia na Irlanda. Minha mãe nos dizia que não
devíamos negar que éramos parentes dele, mas que
também não precisávamos sair contando a verdade.
Guardava todos os artigos publicados sobre Jim, porém raramente nos falava do irmão. As lembranças que ela tinha da família eram penosas. Por causa do
pai -que se tornou um alcoólatra- a família foi
obrigada a deixar o conforto e a segurança da zona
sul de Dublin e ir para a zona pobre do norte. Num
período de 11 anos -1893 a 1904- teve que se mudar 16 vezes.
Porém alguma coisa sua mãe deve ter lhe contado...
Contava o quão delicado Jim era com as meninas.
Deu a entender que não aprovava o fato de ele ter ido
para Paris com Nora Barnacle, com quem só se casaria muitos anos depois (em 1931, para legalizar a situação dos filhos). Mamãe era muito religiosa.
Joyce escrevia para sua mãe?
Jim deixou a Irlanda e não manteve contato com as
irmãs.
Mas há uma pessoa da família para quem ele frequentemente escrevia.
Sim, uma tia, quando ele estava escrevendo "Ulisses". Correspondia-se com tia Josefina e fazia perguntas como, por exemplo, quantas árvores há na
frente da igreja ou onde está o senhor O'Brien etc.
Qual a relação de Joyce com os pais?
Quando era pequeno, era muito ligado à mãe. Com o
tempo, se afastou dela e passou a admirar o pai, que
era o depravado mais bem dotado da Irlanda. Minha
mãe se referia ao pânico que tomava conta dos filhos
quando o pai introduzia a chave na porta. Chegava
bêbado, já batendo em todo mundo. Isso obviamente também marcou Joyce. Foi na infância e na adolescência que ele acumulou os materiais para as histórias, para os personagens...
Quais por exemplo?
Quase todos. O pai aparece em toda a obra de Joyce.
Inspirou a maioria das histórias de "Os Dublinenses". No "Retrato do Artista Quando
Jovem", Stephen Dedalus descreve o
pai como Joyce poderia descrever o
seu: um tenor, um político, um ótimo
companheiro, um contador de histórias. No "Ulisses", o pai aparece das
mais diversas maneiras -o som da
sua voz, a atitude física... Ora inspira
Bloom ora Stephan Dedalus.
Que relação Joyce manteve com a mãe depois de se exilar?
Com 20 anos, ao terminar a universidade, foi para
Paris com o propósito explícito de estudar medicina.
Pretendia sobreviver escrevendo para jornais e dando lições de inglês. A mãe ficou em Dublin sem dinheiro, com nove crianças e um marido bêbado.
Não obstante Jim escrevia pedindo ajuda. Dizia, por
exemplo, que não tinha comido havia cinco dias e
estava morrendo de frio por não ter como pagar o
aquecimento. A mãe fazia o possível e o impossível e
mandava um dinheirinho, que ele imediatamente
gastava para ir ao teatro. Depois, escrevia para ela sobre a peça que havia assistido. Com o tempo, a relação dos dois foi se tornando muito insatisfatória.
Numa das suas cartas, a mãe escreve que lamenta tê-lo decepcionado, não ter entendido o que ele queria
dela. Desculpa-se no fim e acrescenta que é mesmo
burra, como ele dizia.
Joyce era tão sádico com a mãe quanto o seu pai. Sádico
como Stephan Dedalus no "Ulisses"...
Sim, tratava-a com desprezo, como aliás as outras
mulheres depois, as que o sustentavam.
Era sádico por se identificar com o pai...
O pai era um grande contador de histórias e profundamente irreverente. Havia uma admiração recíproca, mas quando Jim foi embora com Nora, o pai ficou com raiva, e eles romperam. Depois, voltaram a
se comunicar, mas, a partir de 1912, não se encontraram mais. O pai ficou na miséria, escrevia para o filho pedindo uma libra, e Jim às vezes mandava, às
vezes, não.
Ou seja, ele fazia com o filho exatamente o que este fazia
com a mãe, era a mesma conduta.
Sim, exatamente a mesma. Jim escrevia para o pai
prometendo um bilhete para Paris, só que ele não
cumpria a promessa. Quando o pai morreu, aos 82
anos, Jim ficou abaladíssimo.
O senhor é independente, não levou em conta a recomendação da sua mãe e se tornou mesmo diretor do Centro James Joyce. Como foi que isso aconteceu?
Sempre me interessei pelo escritor. Li "Dublinenses"
quando tinha 18 anos, "Retrato do Artista Quando
Jovem", aos 20. Não li "Ulisses" durante muitos anos
porque não era possível conseguir um exemplar
aqui em Dublin. Quando enfim adquiri um, fiz 12
tentativas de ler antes de conseguir. Hoje aconselho
as pessoas a irem em frente, entendendo ou não. Li o
"Ulisses" muitas vezes. Cada vez a
gente encontra algo novo.
Como o senhor explica que Joyce tenha
conseguido tantos mecenas?
Não sei. Várias mulheres o apoiaram
e Silvia Beach enfrentou muitos problemas para publicar o "Ulisses". O
mais impressionante é que Joyce
nunca as tenha tratado bem.
Num certo sentido ele considerava que
era a obrigação delas ajudar: ele tinha
uma missão. Qual a relação do neto de Joyce com a obra?
Ele é o legatário dos direitos e é muito complicado.
Prefiro não tocar nesse assunto.
Desde quando Bloomsday é celebrado aqui?
A primeira vez foi em 1954, quando cinco escritores,
entre os quais O'Brien, resolveram fazer a celebração. Partiram à cavalo de Marcelo Tower -onde se
passa o primeiro capítulo do "Ulisses"- com o propósito de ir longe, mas as tentações, os pubs eram
tantos no caminho que a coisa desandou. Em 1982,
no centenário, houve uma outra celebração. Só na
última década Bloomsday foi festejado todo ano.
Será que o dia é comemorado porque o dia de Bloom no
"Ulisses" também é o dia em que Joyce e Nora se encontraram? O que eu quero dizer é que Bloomsday também é
a celebração do amor.
Trata-se de uma interpretação maravilhosa. Isso não
tinha me ocorrido. O "Ulisses" foi um presente que
Joyce deu a Nora. Não há muitas mulheres que tenha
recebido um presente assim, não é?
Quantas pessoas participam da comemoração?
Cada vez mais gente. Temos notícia de 200 celebrações no mundo.
Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de " O Papagaio e o
Doutor", entre outros.
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