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LETRAS MESTIÇAS
O AUTOR DE "RESPIRAÇÃO ARTIFICIAL" FALA DO NOVO ROMANCE QUE ESTÁ ESCREVENDO, PASSADO DURANTE A GUERRA DAS MALVINAS, E DIZ QUE A MISTURA DE GÊNEROS DEFINE A LITERATURA MODERNA
Mauricio Montiel Figueiras
do "Letras Libres"
Um dos principais escritores argentinos, Ricardo Piglia fala nesta entrevista da importância da mistura de gêneros na literatura
contemporânea e da inclinação do público
pelo romance policial, que permite estabelecer vínculos entre lei e verdade, dinheiro e moralidade, poder e corrupção. Comenta ainda o surgimento de um
tipo de narrativa, em que o complô cumpre o papel
outrora reservado ao destino.
"A conversa literária é um gênero importante, ao
qual a crítica não deu o lugar que merece", opina Ricardo Piglia. Fiel a essa sentença, o autor de "Respiração Artificial" (1980), demonstra uma enorme generosidade como conversador para discorrer sobre
literatura "fora do circuito fechado da academia e
dos congressos de escritores". Na entrevista a seguir,
esboça-se o retrato falado de um dos renovadores
das letras latino-americanas contemporâneas, um
detetive que busca incansavelmente as estreitas ligações entre escrita, vida e leitura.
Uma das principais apostas de sua obra é a mestiçagem de gêneros. Diríamos, grosso modo, que seus romances se movem entre vários deles: "Respiração Artificial", entre o filosófico, o histórico e o policial; "A
Cidade Ausente", entre o metafísico, o político e o futurista, à maneira de certo Philip K. Dick ou do Julio
Cortázar de "O Exame Final"; "Dinheiro Queimado",
entre o policial e o jornalismo investigativo. O sr. acha
que a mestiçagem define a literatura que está por vir?
Entre o que tem aparecido e que leio com mais interesse, vejo os sinais claros de uma combinação
de gêneros. Cito como exemplos John Berger [inglês, 1926], Claudio Magris [italiano, 1939] e W.G.
Sebald [alemão, 1944-2001], que marcam uma
forma da qual eu me sinto próximo: a mescla de
máquinas narrativas ou gêneros estabelecidos,
que são como rios em que a gente entra.
Essa forte presença de gêneros, que pressupõe
uma decisão diante da escritura, foi muito polêmica num primeiro momento, agora não mais. A
alta literatura deixou de ser o espaço exclusivo da
combinação livre e da criatividade pura. Os gêneros se definem, basicamente, por serem estereotipados e estruturados, quer dizer, por oferecerem
a versão positiva de um procedimento fixo. Na alta literatura, isso muitas vezes foi visto como uma
coisa pouco factível, embora hoje se reconheça a
elegância da repetição de certas fórmulas.
A par desse uso, há um mecanismo que articula
os gêneros. E como se faz a articulação entre os diferentes rios narrativos? Penso que, em algumas
narrativas situadas nas fronteiras da literatura
atual, os gêneros se combinam com a experiência
autobiográfica: o sujeito que fala, que narra a história, está ligado ao autor. Escritores como Berger, Magris, Sebald ou o Italo Calvino [italiano,
1923-85] de "Se um Viajante numa Noite de Inverno" [Cia. das Letras] representam o estado
atual do romance: a utilização dos gêneros e da
autobiografia misturada com a reflexão.
O GÊNERO POLICIAL É UM GRANDE MODO DE NARRAR A SOCIEDADE
SEM FAZER LITERATURA POLÍTICA EM SENTIDO ESTRITO; AÍ ESTÁ O OUTRO PONTO QUE ME INTERESSA: TRATA-SE DE UMA FORMA QUE DÁ CONTA DA RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E SOCIEDADE
O sr. se declara atraído pelo modelo da narrativa como
investigação. Isso ilustra sua grande proximidade com o
gênero policial, que o sr. já explorou e ajudou a difundir.
Por que escolher justamente esse tipo de literatura que
podemos chamar "menor", segundo a acepção de Gilles
Deleuze?
Há duas respostas que se sobrepõem. A primeira é
autobiográfica: anos atrás, dirigi uma coleção de literatura policial, o que me obrigou a ler uma quantidade enorme de livros para selecionar o que queria traduzir. O que, aliás, continua a acontecer hoje em dia:
é preciso ler muito para encontrar alguma coisa que
valha a pena. Assim, pude ter uma noção da infinidade de romances policiais que são publicados, pelo
menos em inglês. O que conhecemos é só a ponta do
iceberg: Raymond Chandler, Dashiell Hammett, os
grandes escritores do gênero, mas por baixo deles há
uma produção inacreditável. Aprendi a ler romances policiais com rapidez e vi que, em geral, começam bem, nas primeiras 30 páginas, durante a apresentação do ambiente.
Mas, enquanto não aparece a intriga, não se sabe se o
escritor é realmente bom. Quero dizer com isso que
minha primeira relação com o gênero teve a ver com
uma leitura quantitativa. Nesse exercício, comecei a
observar que se trabalhavam certas fórmulas narrativas muito eficazes e que por aí se poderia entender
um funcionamento que não era exclusivo do gênero.
A segunda resposta tem a ver com a história do romance policial. Temos, por exemplo, a surpresa de
deparar um Edgar Allan Poe: um escritor extremamente sofisticado, ligado à imagem da boemia e da
vanguarda à Baudelaire e, ao mesmo tempo, um autor popular, com uma extraordinária intuição sobre
a cultura de massa da época.
Poe inventa um gênero que é uma negociação entre a cultura de massa e a cultura popular, um novo
espaço que começa microscópico -três pequenos
contos escritos em 1841 ou 1842- e que se expande
até inundar o imaginário contemporâneo. Hoje temos não apenas a grande produção de romances de
que falei há pouco, mas também os seriados de TV e
os filmes: o imaginário policial invadiu o mundo
moderno. Vemos, então, como a invenção pessoal
de Poe se transformou em uma forma de narrar com
uma presença notável.
Pois bem, por que esse gênero conseguiu tomar conta do imaginário coletivo do último século e meio?
Acredito que foi por causa de seu modo de ver a sociedade a partir do crime e de estabelecer alguns vínculos: entre lei e verdade, entre dinheiro e moralidade, entre poder e corrupção. O gênero policial é um
grande modo de narrar a sociedade sem fazer literatura política em sentido estrito. Aí está o outro ponto
que me interessa: trata-se de uma forma que dá conta da relação entre literatura e sociedade e que permite construir ficções em sincronia com o funcionamento social.
Em "Respiração Artificial", percebe-se um interesse em
explorar a voz feminina que se cristaliza e se dilata em "A
Cidade Ausente", nas múltiplas vozes concêntricas de
mulheres que confluem na máquina de histórias, essa espécie de Sherazade ou Senhora dos Anéis narrativas. De
onde vem esse interesse, que parece diminuir em "Dinheiro Queimado", um livro eminentemente varonil?
A narrativa feminina sempre me cativou, em muitos
sentidos, como a percepção da realidade a partir de
um lugar habitualmente condenado a uma ótica cotidiana, privada. Para mim isso tem a ver com o nexo
entre a literatura e a circulação social de histórias,
uma questão que me apaixona: como circulam as
narrações em uma sociedade e qual o nosso vínculo
com a narração como uma das experiências centrais
da relação com o mundo. O relato feminino é uma
dessas narrações sociais e acho que a atração que
sinto por ele se condensa em "A Louca e o Relato do
Crime" [em "Prisão Perpétua"], de 1975, o único
conto policial puro que já escrevi.
Em "A Cidade Ausente", eu me aprofundo no relato
feminino, que praticamente se transforma no próprio romance. O que acontece com "Dinheiro Queimado" é que está ligado a uma etapa anterior. Escrevi a primeira versão do livro nos anos 70 e só a retomei muitos anos depois. A intenção ali é pôr em funcionamento um imaginário épico que é estranho à
narrativa feminina, embora eu também tenha descoberto outra coisa no processo de escritura: a feminização da figura masculina. Os protagonistas têm
os emblemas da masculinidade à flor da pele, bem
visíveis, mas entre eles brotam paixões e relações
sentimentais, o que nos permite falar numa elaboração temática: o gaúcho associado ao relato feminino.
"Inventar uma máquina é fácil, basta modificar as peças
de um mecanismo anterior. As possibilidades de transformar que já existem em outra coisa são infinitas." Seria
factível ver nessas frases uma arte narrativa, uma tomada de consciência literária? Penso sobretudo no que você
fez em "Respiração Artificial" e "A Cidade Ausente":
"transformar em outra coisa" os "Diários" de Franz Kafka, no primeiro caso, e "Museo de la Novela de la Eterna",
de Macedonio Fernández, e "Finnegans Wake", de James
Joyce, no segundo.
Existe, de fato, uma idéia em torno da reestruturação
das narrações: a história contada outra vez com outro registro, outro tom de voz. Essa, obviamente, é a
lição de Joyce: vamos contar a "Odisséia" de novo.
Os estudiosos têm enlouquecido tentando estabelecer as referências do "Ulisses", mas acho que o que a
crítica joyciana não percebe é que esses vínculos
com um relato anterior são úteis para quem escreve
o livro, não para quem o lê; o autor se vale deles como se fossem uma espécie de mapa a seguir.
Para o caminho que queria percorrer, Joyce construiu um esqueleto baseado em Homero, de quem
tomou não a "Ilíada", o momento épico, mas a
"Odisséia", o momento romanesco, a história privada do sujeito moderno. Isso leva a pensar que a origem da subjetividade não está em Édipo, o sujeito estruturado, mas em Ulisses, o sujeito vagabundo ou
errante.
Mas insisto: não acredito que o leitor deva necessariamente conhecer as referências que circulam em
uma narrativa. Por exemplo: ao ler escritores de que
eu gosto -William Faulkner, Juan Rulfo-, não tenho certeza de poder captar todas as referências
históricas, pois em cada texto existem elementos implícitos que eu não chego a apreender por completo.
O bom leitor, claro, seria aquele capaz de reconstruir
essa rede de sinais; se bem que, ao mesmo tempo, ele
deveria ter a liberdade de abordar o texto sem pensar
em referências cifradas.
É UM DESAFIO TERRÍVEL: ESCREVER UM ROMANCE QUE TENHA A FORÇA DA NARRATIVA CONCENTRADA, DO CONTO; ESSA É A FÓRMULA QUE TENTEI APLICAR EM MEUS LIVROS, E É POR ISSO QUE UM ROMANCE ME TOMA TANTO TEMPO
Pois bem, como vivemos dentro de uma tradição
talmúdica, alguns escritores, eu incluído, estabelecemos uma ligação entre literatura e certo tipo de
leitura infinita e propomos enigmas e provocações
para o leitor; Beckett, Borges e Joyce foram grandes
mestres nesse campo. Mas, voltando a Joyce, há
uma idéia cristalizada em torno do "Ulisses" como
modelo de construção da subjetividade, entendida
como o movimento que implica a errância e a perda do lar; quer dizer, o sujeito se constitui como tal
na condição de forasteiro, como aquele que chega a
um lugar ao qual não pertence e que lhe causa um
profundo estranhamento. Isso tem muito a ver
com o imaginário contemporâneo.
Falemos da ficção paranóica, um conceito criado pelo
sr. e ao qual dedicou um seminário na Universidade
Princeton (EUA), em 1997.
Longe de entendê-lo no sentido psiquiátrico, eu
uso o termo para definir o estado atual do gênero
policial. Depois de passar pelo romance de enigma
e pelo romance de experiência, para chamá-lo de
algum modo, topamos com a figura do complô,
que me parece muito atraente: o sujeito não mais
decifra um crime privado, mas enfrenta uma combinação multitudinária de inimigos. Nada que lembre aquela relação pessoal entre o detetive e o criminoso, que redundava numa espécie de duelo.
A idéia de conspiração também tem a ver com uma
dúvida que poderia ser formulada assim: como o
sujeito privado vê a sociedade? Eu digo que sob a
forma de um complô destinado a destruí-lo. Ou, dito de outro modo: a conspiração, a paranóia estão
ligadas à percepção que o indivíduo constrói em
torno do social. O complô substituiu, assim, a noção
trágica do destino. Lembremos que o sujeito antigo
devia ler nos oráculos o caráter cifrado do seu futuro,
que já estava traçado de antemão. A tragédia estabelecia um elo entre aqueles que conheciam esse destino, os deuses que emitiam mensagens obscuras, e o
indivíduo que as interpretava bem ou mal. Penso
que hoje os deuses foram substituídos pelo complô,
quer dizer, há uma organização invisível que manipula a sociedade e produz efeitos que o sujeito também procura decifrar.
Esses seriam os dois pólos da ficção paranóica: por
um lado, é o estado do gênero policial; por outro, a
maneira de a literatura nos dizer como o sujeito privado lê o político, o social.
Em certa ocasião, o sr. declarou: "Procuro contar muitas
histórias numa única história". Seus romances funcionariam então como bonecas russas, como "matrioshkas"
narrativas? De onde vem essa idéia?
De uma tradição, a da forma breve, que teve enorme
importância na literatura argentina. Basta pensar em
Borges, em Cortázar, em Silvina Ocampo. No cruzamento do gosto pela concentração narrativa com a
exigência de uma trama que expande as histórias,
nasce essa poética, embalada na ilusão de que é possível manter a intensidade da forma breve no interior do romance. É um desafio terrível, claro: escrever um romance que tenha a força da narrativa concentrada, do conto. Essa é a fórmula que tentei aplicar em meus livros, e é por isso que um romance me
toma tanto tempo. Normalmente, escrevo uma história e, ao reescrevê-la, surge outra, e outra, e mais
outra. Procuro então não eliminar as histórias que
vão se sucedendo no processo da escritura, para fazê-las coexistir.
Estaríamos falando, pois, de uma versão concentrada da grande expansão narrativa, quer dizer, de uma
espécie de expansão concentrada. Essa é a ilusão: por
um lado, conseguir um relato autobiográfico delirante que combine vários gêneros; por outro, trabalhar com um microrrelato que se expande.
Emilio Renzi, o personagem que o sr. concebeu para se
desdobrar em vários textos, não seria mais um modo de
narrar do que um alter ego no sentido estrito da palavra?
Ele está mais para uma espécie de duplo, ameaçador
como todos os duplos, pois todos sabemos que essa
figura tem a ver com a morte. Tenho um particular
interesse no seu envelhecimento. Embora ele faça algumas coisas que eu nunca fiz -por exemplo, ele é
jornalista, e eu nunca trabalhei em um jornal, a não
ser como colaborador-, muitos traços que o caracterizam são extraídos da minha própria vida.
Há outra questão que descobri depois que Renzi
apareceu nos primeiros textos, basicamente no conto-título de "A Invasão" e em "O Fim da Viagem", de
"Nome Falso": a possibilidade de os personagens de
uma história passarem para outra. Uma idéia que,
obviamente -e infelizmente-, não é de minha invenção e que se encontra em boa parte da narrativa
contemporânea.
Os escritores do "nouveau roman" se diziam próximos de Balzac pelo fato de ele ter sido o primeiro a
utilizar esse procedimento. Eu tinha em mente experiências mais concretas: Faulkner, Onetti, o Stephen Dedalus de Joyce, quer dizer, o reaparecimento, não de muitos personagens, mas de apenas um.
No meu caso, tratava-se de ver se era factível urdir
secretamente a biografia de alguém ao longo de
uma série de textos, que contavam outras histórias,
mas que, paralelamente, tratavam da vida de Renzi.
Isso me levou a uma encruzilhada.
Uma possibilidade é seguir o gesto de Pessoa, com
seus heterônimos, o que às vezes me atrai e que reproduziria algumas coisas que eu já fiz. Por exemplo, Renzi aparecer primeiro em "A Invasão", depois como responsável por uma antologia de contos policiais que organizei e mais tarde assinando
textos que escrevi para jornais e revistas. É um caminho muito tentador: escrever e publicar um livro, não com meu nome, mas como Emilio Renzi,
para ver o efeito que provoca. O outro caminho,
que de certo modo está implícito na figura de Renzi, é explorar as mudanças sofridas por um personagem que o escritor escolhe como tema de sua
obra.
Cada romance, para mim, seria uma maneira de
contar um momento da vida de Renzi, sem que ele
seja o centro da trama. Agora estou escrevendo
meu quarto romance, "Blanco Nocturno", em que,
mais uma vez, ele é o narrador, como acontece em
"Respiração Artificial". É um texto em que venho
trabalhando faz tempo, que transcorre durante a
Guerra das Malvinas [1982], embora o conflito não
seja narrado. É uma história de amor e também
tem a ver com o diário de Renzi, que tomei como
protagonista para ver se consigo me livrar dele.
O sr. é um dos poucos escritores contemporâneos da
América Latina que privilegiam a literatura como diálogo com o leitor, e não como monólogo do autor. Você
tende a ver a leitura como ato criativo?
Paralelamente ao romance, também estou escrevendo um livro de ensaios que deve se chamar
"¨Qué Es un Lector?", no qual o que procuro fazer
não é uma história da leitura, e sim rastrear a maneira como o leitor é ficcionalizado em vários romances. Quer dizer, uma história do leitor como
tal, como Figura retratada em diversos textos literários.
Procuro instantes em que apareçam leitores narrados, não leitores reais. Talvez ainda incorpore algumas cenas reais de leitura, momentos em que escritores contam situações como leitores: a primeira
vez que leram determinado texto, a história que
têm com certo livro.
Mas busco antes o leitor como imagem ficcional,
que também foi representada na literatura. Poderíamos pensar numa antologia com todos os leitores inventados por gente como Borges e Vladimir
Nabokov, mas a Figura que procuro seguir é anônima; o único nome desse leitor é o que ele recebe no
instante em que é visto lendo. Minha ilusão com esse livro é que, ao rastrear essa Figura, eu possa dizer
alguma coisa sobre o que significa ler romances.
Tradução de Sergio Molina.
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