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Ponto de fuga
O sinal da amizade
Jorge Coli
especial para a Folha
Em velhos tempos, na França, os endereços de albergues, lojas, casas de negócio eram dados pela menção
do símbolo ou da imagem, expostos sobre a porta de
entrada. Chamavam-se "enseignes", insígnias. Isso explica o título intraduzível de um romance que acabou
de ser publicado em Paris: "À l'Enseigne de l'Amitié"
-"Sob o Sinal (ou tabuleta, ou cartaz, ou reclame) da
Amizade". Nome poético, ele foi, nos fatos, o endereço
do livreiro que editou a comédia de Giordano Bruno:
"Candelaio".
Bruno era um filósofo de pensamento tão livre e
transgressor que acabou prisioneiro da Santa Inquisição durante oito anos, antes de lhe cortarem a língua irreverente e queimá-lo vivo, em 1600. É o protagonista
da história escrita por Jacques Bonnet (ed. Liana Levi).
Ela se passa em 1582, durante dias "ausentes", quando o
calendário, corrigido pelo Papa, suprimiu o período de
10 a 19 de dezembro. Bruno encontra-se em Paris, é protegido do rei, dá aulas na Sorbonne. Eis que uma chacina ocorre numa casa próxima ao hotel onde mora. Seus
raciocínios e intuições transformam-no em detetive
privilegiado.
O livro de Bonnet vem confirmar a suspeita de que a
verdadeira, grande e boa literatura de nossos dias refugiou-se em alguns poucos gêneros, ditos "menores",
entre eles o policial. "À l'Enseigne de l'Amitié" é também um romance histórico. Restitui, por evocação sensória, visual, olfativa, tátil, auditiva, o meio e as ações
humanas daqueles tempos perturbados.
Níveis - A trama de "À l'Enseigne de l'Amitié" é engenhosa. Personagens verdadeiros e documentos autênticos se misturam com os forjados, e a história não se
mostra apenas como pano de fundo. O leitor é atraído
tanto pela solução do enigma quanto pelo mundo do
Renascimento, que se está concluindo em convulsões
violentas. As crises mais agudas provêm dos conflitos
religiosos, que engendram ódios, extremismos, guerras, genocídios, como o da noite de são Bartolomeu, em
1572, quando 3.000 protestantes foram massacrados em
Paris.
Em meio às trevas, emerge a figura do filósofo. Ela estabelece a fragilidade do pensamento diante dos fatos.
Porém seu papel mostra-se crucial, já que não cessa de
interrogar, de buscar sentidos diante do caos instaurado pelas certezas convictas e tirânicas. "Ora, a verdade
não passa de diversidade e confrontação, o que incomoda todo sistema organizado (...). Chega-se a perguntar se a fé num deus único não é um perigo perpétuo. Se
teu deus é único, o dos outros não pode existir, e, se ele
existe, o teu é como que negado. Um dos dois deve desaparecer. Assim, no interior de uma mesma crença, se
destripa, esquarteja, castra, desonra." São excelentes as
passagens em que Jacques Bonnet põe na boca de Giordano Bruno reflexões sobre a natureza da guerra. Banhado em pavores e inquietações, o livro entra em sintonia com os medos de nosso tempo.
Bardo - "Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia/
de chorar, me vinham de outros olhos." Quem lê hoje
Cassiano Ricardo? Bem poucos. Luiza Franco Moreira,
depois de refletir sobre o poeta e propor chaves para sua
compreensão no livro "Meninos, Poetas & Heróis"
(Edusp, 2001), permite agora um contato direto com
seus poemas. Organizou a antologia "Cassiano Ricardo", na coleção "Melhores Poemas", da editora Global.
Com mão de mestra, a escolha revela uma poesia alta
como poucas foram dentro da literatura brasileira.
Cantor - Cassiano Ricardo possui uma eloquência ampla, quase épica. Guilherme de Almeida, ao contrário,
foi um poeta íntimo, feminino, delicado. Compraz-se
em elegâncias, servidas pelas frases lapidadas ao pó de
esmeril. Seus livros mais importantes: "Encantamento", "Acaso", "Você", mais os deliciosos haicais, foram
reunidos num só volume por Suzi Frankl Sperber (editora da Unicamp). É um prazer lê-los. Fica apenas a saudade das edições antigas e cuidadas. Livros bonitos, pelo papel, formato e capa, correspondiam ao espírito do
refinado poeta.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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