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DERRIDA DE BOLSO
ENTENDA, EM SEIS VERBETES, OS PRINCIPAIS CONCEITOS
DESENVOLVIDOS E RETRABALHADOS PELO AUTOR DE "A ESCRITURA
E A DIFERENÇA" E "ESPECTROS DE MARX"
especial para a Folha
Levantar um pequeno vocabulário de
Derrida se tornou quase impossível,
pelo fato mesmo de não haver nele
propriamente conceitos, mas inúmeros termos que mobiliza como "alavancas
de intervenção" em textos e contextos específicos. O que se segue são notas, no sentido de orientar minimamente o leitor interessado numa primeira incursão na escrita derridiana.
(Evando Nascimento)
DESCONSTRUÇÃO
Derrida tem enfatizado o fato de não haver
uma "desconstrução", como o uso abusivo do termo sugere, o qual migrou para a
mídia, chegando às telas no filme "Desconstruindo Harry", de Woody Allen, por
exemplo. O sentido de bandeira ou movimento "desconstrucionista" ganhou força
nos EUA, em princípio sob a liderança de
Paul de Man, amigo de Derrida, mas sempre com grandes reservas por parte deste
quanto ao rótulo.
Cada país, cada instituição, inventou sua
própria desconstrução, por meio de recortes, enxertos e combinações de toda ordem. Mesmo assim, o vocábulo permanece fortemente relacionado ao trabalho de
Derrida. Porém, como ele sublinhou em
entrevista a mim concedida ao Mais! em
2001, "isso se desconstrói", pois se trata de
um processo filosófico, social, antropológico e político imemorial, que antecede e
vai além do autor de "Espectros de Marx"
[ed. Relume-Dumará].
O original francês "déconstruction" já é
uma tentativa de tradução de "Destruktion" e "Abbau", utilizados por Heidegger
em "Ser e Tempo". Numa carta a seu tradutor japonês, Derrida explica que, quando lhe ocorreu na década de 60, não estava
certo nem sequer de que existisse em francês. Ele não encontrou a palavra nos dicionários contemporâneos, mas sim como
uma espécie de arcaísmo no dicionário
"Littré", do século 19. A definição dada recobre as áreas de retórica, gramática, arquitetura etc.
Em Derrida, o termo tem uma relação
com a metáfora arquitetônica de "estrutura", que se impunha nos anos 60. Um conceito que, como expôs em uma conferência sobre Claude Lévi-Strauss, é freqüentemente pensado de maneira centrada. Ele
propõe então liberar o que chama de o jogo ou a "estruturalidade da estrutura", a
partir dos questionamentos das figuras do
centro no Ocidente: Deus, homem, "energeia", "eidos", presença, "ousia", razão. Se
tais representações são múltiplas, isso significa que o centro não é fixo nem uno,
mas tende a ser substituído ao longo da
história da metafísica.
"DIFFÉRANCE"
Eis uma das palavras mais controvertidas
em relação à fortuna crítica de Derrida,
sendo também uma das mais recorrentes.
Como o sertão de Guimarães Rosa, a "différance" está em toda parte. Houve várias
tentativas de tradução em português,
umas mais felizes, outras menos: "diferança", "diferência", "diferensa", "diferaença"
etc. Todas me parecem insuficientes, pois
defendo o princípio de "in-tradução", para
citar um neologismo caro aos Campos.
"Différance" é um daqueles termos-chave
que, como o "tao", o "logos", o "Dasein"
de Heidegger, a "physis" ou a "mímesis"
de Aristóteles, só deveriam ser traduzidos
por meio de comentários, deixando-se intacta a palavra, como um corpo estrangeiro na língua nacional e como um desafio
permanente aos leitores.
Qualquer tentativa de adaptação fará
com que o valor reflexivo do vocábulo se
perca, bastando as novas recontextualizações para lhe dar outra vida. O quase neologismo francês implicou uma rasura na
palavra equivalente à nossa diferença: "différence". Ali onde havia um "e", Derrida
riscou e colocou um "a". Mas a distinção
entre essas vogais não é audível em francês,
sendo perceptível só na leitura.
Esse foi o modo que Derrida achou para
reverter o "fonocentrismo" e o "logocentrismo" da tradição metafísica: se em Platão, Rousseau, Saussure e mesmo Austin, o
registro oral é privilegiado em relação ao
escrito, trata-se de inverter a relação e propor uma valorização da escritura. Esta e a
"différance" são os chamados "indecidíveis", ou seja, termos que reaparecem nos
textos derridianos, mas que escapam à definição homogênea do conceito como recorte na unidade ideal da significação.
ACONTECIMENTO/EVENTO
"Événement" é um termo fundamental
para entender a relação com a alteridade.
As duas traduções como acontecimento
ou evento são cabíveis; opto pelo primeiro
para tirar o máximo proveito de um termo
corrente da língua, levando-o além de suas
fronteiras cotidianas. Para Derrida, só há
acontecimento de fato ali onde se pode
contar com a chance do acaso. Daí que estruturalmente não se pode excluir a possibilidade do "pior", que vai muitas vezes
além do "mal radical" de Kant.
Como desenvolve em "Da Hospitalidade" (1997), no Ocidente a hospitalidade é
toda condicionada por regras estritas: há
regulamentos de imigração e, uma vez imigrado, o indivíduo é obrigado a se submeter às leis do país. O motivo da "hospitalidade incondicional" serve para repensar a
idéia de uma Europa fechada em si mesma,
freqüentemente incapaz de acolher e lidar
com a alteridade diferencial. A noção de
incondicionalidade (da hospitalidade, do
dom, do perdão) se aproxima inevitavelmente de um certo absoluto metafísico,
mas dele se distingue na medida em que na
realidade, aqui e agora, deve haver uma negociação entre o incondicional e as condições efetivas em que um acontecimento
pode ter lugar.
Seu apoio a grupos que defendem os
sem-documento ["sans-papiers"] se
orienta nesse sentido. Claro que o migrante judeu magrebino que Derrida foi tem
um papel decisivo na reconsideração geral
dos modos hostis de relação com o outro
em território europeu, praticada em nome
da antiga soberania nacional, ora convertida em soberania supra-estatal.
LITERATURA
Observe-se logo que não existe literatura
em si mesma em Derrida. Ele recorre inicialmente ao termo para tratar de um discurso que de algum modo, embora não detenha um conceito essencialista, propôs
um tipo de pensamento distinto do filosófico. Nesse sentido, literatura é mais ou
menos equivalente ao termo grego "poíesis", que deu poesia em português e é amplamente discutido em um ensaio de "La
Dissémination - La Double Séance" [A Dupla Sessão]. Esse texto procura desconstruir um fragmento do diálogo platônico
"Filebo", em contraponto com um curto
poema em prosa de Mallarmé, "Mimique"
[Mímica]. Originalmente publicado na revista "Tel Quel", "A Dupla Sessão" tem a
ver com o experimentalismo da revista,
embora sem cair nos dogmatismos da
mesma. Posteriormente, Derrida se afastará do grupo liderado pelo escritor Phillippe
Sollers.
Um outro uso que Derrida faz da palavra
literatura é mais recente e provém de uma
longa entrevista com o especialista americano Derek Attridge, intitulada "This
Strange Institution Called Literature" [Essa Estranha Instituição Chamada Literatura]. Aí a literatura coincide em suas origens
com a noção moderna de democracia, tal
como a discutimos desde pelo menos a segunda metade do século 18 até hoje. Ele vai
dizer que um autor como Beckett nada
mais teria a ser desconstruído, já que o trabalho efetuado com a linguagem verbal
desmobiliza a maioria dos preconceitos
metafísicos.
Essa literatura pensante converge com
uma certa noção de democracia pelo fato
de, em princípio, o escritor ter o direito de
"dizer tudo". Mais recentemente, em "Papel-Máquina", ele declara que a literatura é
um segredo ostentado ou alardeado ["un
secret affiché"]: um escritor pode contar
sua vida mais íntima que, sob as vestes da
ficção, ela poderá passar como algo que
não é experiência privada.
Essa "força de liberdade", para citar Barthes, da literatura custou evidentemente
um alto preço a muitos escritores, o que
prova que a democracia como a conhecemos está longe de uma prática efetiva.
PHÁRMAKON
Está entre os indecidíveis mais conhecidos.
Derrida detecta nos diálogos de Platão a repetição do termo "phármakon", sendo
correntemente traduzido como "remédio"
em francês. Toda a leitura de "A Farmácia
de Platão" [ed. Iluminuras] é no sentido de
mostrar que essa tradução corresponde a
uma decisão interpretativa, pois nos diálogos platônicos o termo detém grande ambivalência, podendo ser traduzido tanto
por remédio quanto por veneno. A palavra
"droga" forneceria uma outra possibilidade de transposição, não tivesse recebido
forte conotação negativa em nossa cultura.
A grande característica do "phármakon"
é não ter nenhuma essência, oscilando entre o bem e o mal, o presente e o ausente, a
vida e a morte, o masculino e o feminino.
No "Fedro", de Platão, por exemplo, ele
vem sutilmente associado à escrita. Numa
das cenas finais do diálogo, dentro de um
mito sobre a origem dos caracteres escritos, o deus supremo egípcio Tamuz vai
qualificar o invento de seu subalterno
Thoth como um "phármakon", um "veneno", para a memória viva, à medida que os
humanos vão se descurar do exercício
mnemônico, delegando-o à letra morta.
Na boca do pai da escrita, o semideus
Thoth, a escrita é dada também como um
"phármakon", um fortificante para a memória, sendo pois um bem para a humanidade. Ocorre assim um giro do termo, que
ganha sentidos opostos quando aplicado
ao mesmo objeto, a escrita, que se torna
um "phármakon" como remédio ou veneno, a depender de quem a avalie.
Se isso acontece, diz Derrida, é porque a
escrita-"phármakon" precede estruturalmente à constituição das oposições metafísicas: seu valor positivo ou negativo é o resultado de uma decisão interpretativa e,
portanto, tradutória.
TRADUÇÃO
Derrida é um dos grandes pensadores da
tradução, junto com aqueles que direta ou
indiretamente refletiram sobre/ praticaram a atividade tradutória, tais como Cícero, são Jerônimo, Lutero, Walter Benjamin, Heidegger e Roman Jakobson. Em
Derrida, o fundamental é pensar que não
se trata de uma tarefa simples, na medida
em que não há transparência entre as línguas. Traduzir não pode ser entendido como o simples ato de conduzir o sentido da
palavra de um idioma para outro.
É preciso sempre levar em conta o corpo
significante das palavras -daí que algo
sempre se perde na passagem das línguas,
mas ganha-se também o próprio movimento intercultural.
O ato de traduzir é eminentemente cultural, pois envolve contextos, registros e
lugares de enunciação diferenciados. Com
a tradução, fica também evidenciado o aspecto diferencial originário das línguas,
que, embora se relacionem intensamente
desde o começo, carregaram marcas eminentemente distintas.
A tradução é quem melhor "traduz" o
processo geral da "différance" como diferenciação empírica e transcendental. É ela
que põe em causa o mito da unicidade divina e o aspecto infeliz de Babel. Por meio
da comunicação intensiva entre as línguas,
a tradução promove a possibilidade de
uma Babel feliz, mesmo pós-queda, uma
vez que contradiz a existência do Deus único, criador do verbo puro da Origem.
"Des Tours de Babel" [Torres, Voltas ou
Desvios de Babel], traduzido em português como "Torres de Babel" [ed. UFMG],
desconstrói a visão até certo ponto idealizada do que Haroldo de Campos chamou a
"metafísica da tradução" de Walter Benjamin. Em Derrida, a tradução é também
uma metáfora para a leitura desconstrutora. Nesse sentido, costumo dizer que "ler
Derrida é traduzir Derrida" -ainda que o
estivesse lendo em francês para escrever
no mesmo idioma, o estaria traduzindo,
remanejando e passando adiante os rastros de seus textos.
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