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Duas antologias discutem as implicações políticas e simbólicas do conceito
de raça no Brasil e sua relação com as noções de retórica e classe social
As metamorfoses do outro
Manolo Florentino
especial para a Folha
Do outro já se disse não passar
do demônio que cada qual renitentemente carrega consigo.
Nada no entanto afiança ser essa a derradeira palavra sobre o tema. E a
maioria das histórias que têm a alteridade por eixo ou a tangenciam operam não
apenas com um outro exterior ao sujeito,
mas também com atores coletivos. Abarcam igualmente inúmeros portos de
uma longa travessia da descoberta do
não-parente ao encontro do que veio ao
mundo fora da compulsória guarda do
meu Estado-nação.
Em tão extenso percurso jamais logramos libertar-nos do terrível paradoxo da
alteridade. Pois, se é certo que, ao presumirmo-nos superiores ao outro, aplainamos o terreno para eventualmente submetê-lo, implícito a semelhante assunção se encontra também o saudável reconhecimento da diferença entre ambos. O ideal de igualdade que povoa tantos espíritos generosos, ao contrário, não raro descamba em movimentos assimilacionistas. Nada mais natural, já que seu suposto -a in-diferença- representa a
autoritária negação das dissimilitudes
que a todos nos tecem.
Não há garantias de estarmos melhorando. E não deixa de ser irônico observar que o ocaso do fundamentalismo comunista tenha tornado o Ocidente mais
uma vez prisioneiro da nação. Muitas
são as partes da Europa onde a afirmação étnica é palavra de ordem, por vezes
à custa de centenas de milhares de vidas.
Em sociedades multiculturais, como nos
Estados Unidos, ainda impera o ódio racial, não surpreendendo que ali as questões relativas à identidade não raro se expressem fortemente ligadas à luta pelos direitos civis.
Caso singular
Há muito o caso brasileiro é considerado singular. E foi a
Unesco a primeira grande agência a reconhecê-lo em escala internacional, financiando férteis pesquisas durante o
imediato pós-guerra. Acreditava-se que
o padrão de relações raciais vigente no
Brasil seria bem menos conflitivo do que
em outras sociedades, e que -no rastro
da velha tradição anglo-saxã da ciência
aplicada -, desvendando-o, poder-se-ia
igualmente desvelar as fórmulas a serem
aplicadas a outros contextos. Visava-se
sobretudo a prevenir a emergência de
um novo holocausto.
As tramas sociais, políticas e simbólicas mediante as quais, no Brasil, a alteridade se converte (ou não) em raça são
mais uma vez objeto de análise, agora
por parte de duas seletas acadêmicas:
"Classes, Raças e Democracia", de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, e "Raça
como Retórica", organizada por Yvonne
Maggie e Cláudia Rezende.
São trabalhos bem-vindos, em primeiro lugar, por se inscreverem em um momento da história contemporânea em
que afirmar o outro de cada sociedade
tornou-se uma espécie de obsessão, não
importando muito se se tratam de sociedades estruturalmente
multiculturais ou mestiças. São antologias igualmente bem acolhidas por
oferecerem novas contribuições a um tema tantas
vezes abordado com indisfarçável pudor, mesmo
quando envolto em códigos politicamente corretos. Toda antologia é, por
definição, desigual. Fruto
da labuta de um único autor, entretanto, o livro do
sociólogo Guimarães é
por isso bem mais homogêneo do que "Raça como
Retórica". Nesta última, obra conjunta
de uma dezena de pesquisadores de variada formação, a fluidez das fronteiras
étnicas e raciais brasileiras, suas expressões pretéritas e contemporâneas -sobretudo urbanas- e outros paradigmas
de raça e de nação são convincentemente
abordados.
O uso persuasivo da linguagem que
classifica, mas que continuamente realoca os atores sociais, enseja a própria manipulação da taxonomia. E as regras que
presidem tais mudanças acabam por
desvendar sofisticados jogos de poder.
Destaque para o pungente capítulo de
Robin Sheriff e para o refinamento das
idéias de Vincent Crapanzano. O que decididamente aparta os dois trabalhos são
os sentidos imputados à persistência entre nós das grandes conclusões dos estudos promovidos pela
Unesco, a saber: 1) é impossível apreender as relações raciais no Brasil elidindo-se as relações de
classe; 2) a classificação
racial brasileira é, mais do
que complexa, ambígua,
pois está baseada não apenas em traços fenotípicos,
mas também na posição
social de cada um; 3) a
"democracia racial" é
mais ideologia do que fato, havendo forte correlação entre raça e classe,
com os mais escuros ocupando a base da pirâmide social -e, os
mais claros, o seu topo.
Com honestidade intelectual, Guimarães vai fundo nos meandros da terceira
conclusão e inova, buscando redefini-la
em prol de uma perspectiva assumidamente racialista das classes no Brasil.
Para começar, e com conhecimento de
causa, ele restabelece a paternidade ao
termo "democracia racial", criado não
por Gilberto Freyre (1900-1987), como
vulgarmente se imagina, mas sim por
Roger Bastide [sociólogo francês (1898-1974)", em artigo no "Diário de S. Paulo"
de 31 de março de 1944. Para além disso,
sua análise busca alargar a noção marxista de classe, restituindo os elementos
não-econômicos dela originalmente quitados, no intuito de demonstrar que, em
um sistema baseado na apropriação diferenciada dos recursos, como o capitalismo, o preconceito racial resulta na reprodução de posições de classe.
Ideologia
Coerente com esse ponto de vista, "Classes, Raças e Democracia"
propõe uma provocante releitura do período 1945-64, definindo os sucessivos
governos populistas não apenas como expressões de compromisso entre classes, mas também entre raças. Eis o mote para que a ideologia da democracia racial surja como expressão de um pacto econômico e político a unir os trabalhadores urbanos e intelectuais (ambos negros) com as elites gestoras do projeto
desenvolvimentista.
A variável flutuante do modelo sociológico proposto é representada pelas
classes sociais, e não pelo componente tipicamente racial da sociedade. Ora, sabe-se que desde a época colonial o sistema classificatório vigente no Brasil faculta aos atores sociais a real possibilidade
de mudança de cor -fato impensável
no âmbito das relações entre as raças nos
EUA, por exemplo.
Por isso creio ser capital ao inovador
"approach" de Guimarães uma demonstração mais convincente de que "raça" e
"cor" -tal como ambas aparecem, respectivamente, nos cotidianos anglo-saxão e brasileiro- constituam de fato noções intercambiáveis.
Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).
Classes, Raças
e Democracia
232 págs., R$ 24,00
de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães. Editora 34 (r. Hungria,
592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3816-6777).
Raça como Retórica
462 págs., R$ 45,00 Yvonne Maggie e Cláudia Rezende (orgs.). Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/
2585-2000).
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