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UM DIÁLOGO EXTRAORDINÁRIO
CORRESPONDÊNCIA COMPLETA ENTRE MÁRIO DE ANDRADE E DRUMMOND,
QUE SAIRÁ EM JANEIRO PELA ED. BEM-TE-VI, JÁ SE DESTACA COMO UM DOS MAIS
IMPORTANTES DOCUMENTOS PARA REAVALIAR A CULTURA E A HISTÓRIA DO BRASIL
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Carlos & Mário - Correspondência de
Carlos Drummond de Andrade
e Mário de Andrade
630 págs., preço não-definido
Organização e notas de Silviano Santiago. Ed.
Bem-Te-Vi (av. Presidente Wilson, 231, 10º andar,
Centro, CEP 20030-021, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/
xx/21/ 3804-8678).
Alcides Villaça
especial para a Folha
Um dos frutos (e não dos menores) do modernismo de 22 foi a
abertura de diálogos genuinamente críticos entre artistas e
intelectuais, para muito além das picuinhas, poses e beletrismos de ocasião.
Amizades e discussões fortaleceram-se
reciprocamente na intensidade das palavras e dos gestos -fenômeno que, numa
cultura tradicionalmente tão permeável
às acomodações, já é, em si, uma pequena revolução. A correspondência entre
Mário de Andrade e Carlos Drummond
de Andrade é um dos mais extraordinários desses diálogos.
Desde 1982 conheciam-se as cartas de
Mário a Drummond recolhidas, anotadas e publicadas por iniciativa deste em
"A Lição do Amigo" (ed. José Olympio),
título que traduz uma justíssima avaliação. Saem agora as de Drummond a Mário, entremeando-se às primeiras e constituindo, assim, o diálogo completo
-pois diálogo já havia na inflexão e no
espírito das cartas do escritor paulista,
que nos faziam deduzir as perguntas e
respostas de seu interlocutor mineiro.
Antes de ler o volumoso conjunto, que
abarca o período de 1924 a 1945, imaginava eu que esta outra metade completaria a primeira, numa simples adição, mas
o produto é evidentemente mais complexo: as cartas já conhecidas de Mário
ganham nova densidade no confronto
com as de Drummond, e as deste dão
corpo e alma ao que especulávamos nas
entrelinhas. Perfaz-se, enfim, o diálogo
por todas as razões histórico entre os
dois grandes escritores -travessia pela
qual cada leitor fica a partir de agora responsável, ampliando as conversas na
ressonância da interpretação.
Numa brutal tentativa de síntese, diria
que há três temas fundamentais nessa
longa correspondência: o do eu, o do
Brasil e o da literatura -a corporeidade
de cada um firmando-se na articulação
com os demais. A frieza do esquema talvez se relativize se aceitarmos que o primeiro tema compõe-se das modulações
emocionais e das questões objetivas que
implicam a definição em processo do sujeito que fala e ouve, na prática profunda
da amizade pelo outro. O segundo tema
-o Brasil- configura-se como o problemático chão histórico e comum de todas as conversas, incluindo-se aí a disposição para negá-lo e ultrapassá-lo por
força de um racionalismo cético, tomado
como universal (Drummond), ou para
reconhecê-lo em bem determinadas manifestações de cultura que podem despertar -aí, sim- proposituras de universalidade (Mário). A literatura, com
ênfase na poesia, é o expressivo campo
de prova de todas as mediações, particularizando-se tanto na discussão de detalhes formais quanto no direcionamento
mais amplo da compreensão da arte moderna.
Sim, Mário é o mestre, buscado nessa
condição pelo jovem Drummond. Não
tardou que a simpatia inicial se revelasse
empatia profunda, a tal ponto que a relação entre ambos galgou o foro privilegiado da verdadeira pedagogia, na
qual todos os problemas são comuns e o
confronto das análises é também prova
da amizade que estima as diferenças. O
jovem aprende com o mais velho, reservando-se porém a ordem dos conflitos
que lhe pertencem como inalienáveis; o
mais velho reage com a ambição de demovê-los do outro, mas com isso também expõe a verdade dos seus. Os contrastes de personalidade entre Drummond e Mário são do tipo harmônico, isto é, enriquecem-se no apuro da argumentação sincera e na franca avaliação
das razões do outro. Se o individualismo
culposo de Drummond postula a vantagem da lucidez irônica, o personalismo
responsável e irredutível de Mário acusa
todos os "sequestros" que impedem o
amigo de algum empenho construtivo. A
arte não vale a vida, a amizade é maior
que a literatura.
O Brasil -centro da paixão problemática, mas inamovível, nos projetos e nas
realizações de Mário- era para o jovem
Drummond um brejo insalubre, que
convinha sobrevoar espiritualmente, rumo à Europa. Não tarda, porém, que o
criador de Macunaíma transforme as razões de expatriação do amigo em pontos
de interrogação, conquistando-o não para o nacionalismo, mas para a investigação dessas problemáticas raízes nossas
que, volta e meia, paradoxalmente, se alçam na busca de um desterro consolador. Na trajetória da poesia de Drummond, essa busca traça uma polaridade
que, aqui e ali, se apresenta como desejo
de chão, de origem, de enraizamento, seja para enfrentar um compromisso histórico, seja para dar fé da condição de
uma aporia. Há presença de Mário naquela polaridade.
Quanto à literatura (incluindo-se aí o
cenário cultural, os debates, as circunstâncias de afirmação e de circulação das
idéias no decênio modernista e depois
dele), cada um dos interlocutores tem
inúmeras lições a dar. As de Mário derivam de sua poética mais sistêmica, com a
vocação dos princípios e conceitos que
sabem se transfigurar em rapsódias, sátiras ou "meditações"; as de Drummond
obedecem ao dinamismo dramático de
sua lírica, trazendo o leitor para os poemas em que a inteligência, a timidez e a
sensibilidade se combatem ferozmente,
como tão bem compreendeu seu amigo
paulista.
O resto é o principal: nossa apreensão
das tonalidades afetivas, das questões feridas, dos fatos políticos repercutindo
entre dois brasileiros, do limite das obsessões intelectuais, da significação que
se insinua entre o dito e o silenciado. As
cartas estão abertas, em sua minuciosa
humanidade. Na edição primorosa, fartamente ilustrada e documentada, destaca-se o trabalho amoroso de Silviano
Santiago, que as introduz discutindo-as e
que as anota com profusão -empenho
com que nos convida à interpretação da
matéria viva dessas falas nascidas da inteligência e da amizade.
Alcides Villaça é professor de literatura brasileira
na USP.
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