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Em "Kadish", o húngaro Imre Kertész faz um intenso trabalho de luto sobre a experiência do Holocausto
Uma cova aberta no ar
Kadish
132 págs., R$ 20,00
de Imre Kertész. Trad. de Rachel Abi-Sâmara. Ed. Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/xx/21/502-9092).
Paulo Schiller
especial para a Folha
Não". Não se pode conceber ter
filhos num mundo que viveu
os horrores dos regimes totalitários em que criminosos comuns eram idolatrados a partir do instante em que assumiam o poder. Assim
responde o narrador, sem titubear, à
pergunta do dr. Oblath, filósofo, durante
uma caminhada num bosque de faias,
nos arredores de uma casa de repouso
para escritores em férias, entre as colinas
suaves destacadas em meio à grande planície húngara.
Kadish é a oração que os judeus religiosos recitam pelos mortos. O narrador de
Imre Kertész, escritor e tradutor literário
como o autor, diz o seu kadish pelo filho
que nunca vai nascer: segundo ele, a insistência pela preservação da vida é o alimento do totalitarismo.
Esse sobrevivente de Auschwitz que
adotou o ofício de tradutor para vestir a
aparência de uma profissão objetiva, respeitável aos olhos das autoridades, faz da
caneta a pá com que termina o trabalho
começado por outros: escava a própria
cova, uma cova no ar, onde não se fica
apertado, sepultura feita da fumaça dos
fornos crematórios.
Concentração absoluta
O "Kadish" de Kertész é um longo monólogo
interior -que busca a libertação pelo
ato torturante de contar- de extraordinária densidade filosófica, poderoso pela
angústia, pela ironia, pela aflitiva lucidez
e, sobretudo, pela musicalidade, uma
oração vociferada que nos obriga a vibrar em uníssono com a respiração dessa
compulsão discursiva numa concentração absoluta, sem nenhuma concessão.
O escritor fala da deportação, de seu
casamento fracassado, que repete o dos
próprios pais, da infância sofrida marcada pelo pai despótico e pela vida escolar
no internato. Na "Mitteleuropa", na Europa Central da infância do autor, a educação se fundamenta sobre o culto à autoridade do pai, e, se Deus é a glorificação do pai, Auschwitz é Deus revelado, a
consequência lógica do exercício da dominação paterna, excesso das virtudes
pregadas na infância. As palavras do pai
e Auschwitz produzem o mesmo eco,
que também ressoa na chamada semanal em que o diretor julga e sentencia os
alunos impotentes perfilados junto à
longa mesa do refeitório do internato.
Auschwitz é como uma fruta madura,
dependurada quem sabe há séculos,
pronta para cair na cabeça das pessoas.
Experiências fracassadas
Imre
Kertész, prêmio Nobel de Literatura de
2002, nasceu em Budapeste em 1929. Deportado para Auschwitz em 1944, foi libertado em Buchenwald em 1945. De
volta à Hungria, descobre que todos os
seus familiares desapareceram. Entre
1948 e 1951, trabalha num jornal que se
vê obrigado a deixar quando o diário se
transforma em órgão oficial do Partido
Comunista. A partir de 1953, depois de
uma experiência fracassada no Ministério da Indústria, decide ganhar a vida como escritor. Mora num pequeno quarto
sublocado e, seguindo a tradição dos
predecessores literários de seu país, escreve nas mesas dos recessos escuros dos
cafés da capital.
O stalinismo não é terreno propício para a literatura. Assim, passa a traduzir, do
alemão, autores como Nietzsche, Hofmannstahl, Schnitzler, Freud, Joseph
Roth, Wittgenstein e Canetti, todos eles
influências importantes em seus trabalhos posteriores. Escreve também comédias musicais, mistos de teatro de revista
e opereta, populares na Hungria da época. Em 1975, após a recusa inicial de alguns editores, Kertész publica "Sorstalanság" (Ausência de Destino), fruto da
passagem pelos campos aos 15 anos de
idade. "A Kudarc" (Fiasco), de 1988, contém a narrativa do silêncio com que o
público e a crítica receberam seu primeiro livro. "Kadish" é o capítulo final dessa
trilogia que tem em comum o protagonista e a experiência concentracionária.
Interromper a linhagem
O kadish
ritualístico dos enlutados pelos que se foram não contém nenhuma referência à
morte. Ao contrário, é uma exaltação da
vida. A resistência ao totalitarismo seria
a entrega ao aniquilamento, à esterilidade ou a reafirmação de uma paternidade
outra, que imortaliza a memória em ato?
Esta é a fenda aberta por Kertész, para
quem não há mais que uma única saída:
interromper a linhagem e seguir cavando a própria cova.
Paulo Schiller é psicanalista, autor de "A Vertigem da Imortalidade" (Cia. das Letras). Traduziu
do húngaro "O Legado de Eszter" e "Veredicto em
Canudos" (Cia. das Letras), de Sándor Márai.
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